Maximina Girão Ribeiro
Durante séculos, pela calada da noite, homens ou mulheres embuçados e às escondidas, foram deixando milhares de recém-nascidos nos adros das igrejas, à porta destas ou nas soleiras dos conventos. Tratava-se de crianças abandonadas pelas mães que não tinham condições para as criar. Mas, muitas crianças nem essa sorte tiveram, pois eram colocadas em locais recônditos, de difícil acessibilidade, tendo por companhia ratos, porcos, cães vadios, acabando por morrer de fome, frio, doenças, ou mesmo devoradas pelos animais.
O abandono de crianças era mais comum nas cidades pois, no campo, os enjeitados eram, muitas vezes, adoptados como filhos de criação ou agregados nas famílias, a fim de constituírem mão-de-obra na agricultura.
Os princípios caritativos e de compaixão por estas crianças contribuíram para que se criassem mecanismos capazes de “aceitar” este rol considerável de rejeitados pela sociedade. Em Portugal, na Idade Média e por iniciativa régia, foram fundados os primeiros organismos de acolhimento e assistência a crianças expostas. Sabe-se que, no Porto, pelo menos desde 1534, foi imposta à Câmara da cidade a obrigação de criar os expostos e nomear um indivíduo, conhecido por “Pai dos Meninos”, que se encarregaria de procurar mulheres para cuidarem das crianças indesejadas, fazendo estas de amas-de-leite e zelando pela sobrevivência desses “filhos de ninguém”. A Câmara assumia esta obrigação até que a criança exposta completasse sete anos de idade.
A partir de 1686, por iniciativa do padre Baltasar Guedes (fundador do Colégio da Graça) e de Frei Manuel Rodrigues Leitão, lançaram-se as bases para a criação da Casa da Roda, passando a cidade a contar com uma outra “solução”, criada com a finalidade de receber os recém-nascidos abandonados – era a Roda dos Expostos ou dos Enjeitados. Por determinação de D. Pedro II esta instituição seria financiada pela Câmara Municipal do Porto e administrada pela Santa Casa da Misericórdia da mesma cidade. Começou a funcionar, a partir de 1689, na Rua dos Caldeireiros, em frente ao Padrão de Santo Elói, tendo uma ligação directa ao hospital de D. Lopo de Almeida (antigo hospital Rocamador), na rua das Flores, pertencente à Misericórdia.
Na realidade, a ligação ao hospital era indispensável, se pensarmos que as crianças recolhidas chegavam com inúmeras fragilidades, resultantes da crueldade do acto de abandonar, da falta de alimentação, da ausência de carinho e de amparo. À Casa da Roda competia proporcionar a alimentação, o vestuário e a educação às crianças que recolhia, dado que a instituição fora fundada com o intuito de oferecer “[…] pronto refúgio e profícuo amparo […]” às crianças abandonadas.
A designação de roda, para recolha das crianças, está relacionado com um mecanismo, em geral de madeira, embutido numa parede, normalmente existente junto da portaria dos conventos, como se fosse um cilindro giratório que possuía uma cavidade lateral, destinada à colocação de meninas e meninos. Eram, quase sempre, recém-nascidos, ou crianças de poucos meses, que eram deixadas na roda para ficarem ao cuidado de uma instituição de caridade. Essas crianças eram expostas na placa giratória, construída de maneira a que as pessoas que expunham a criança não fossem vistas nem reconhecidas, pela pessoa que as recebia – era um abandono anónimo. O compartimento lateral da roda servia também para colocar donativos em dinheiro ou géneros, ou até objectos, deixados como oferta por pessoas que queriam contribuir para a subsistência daqueles que viviam na instituição religiosa.
As crianças expostas eram deixadas com alguns sinais ou objectos, na sua maioria de valor simbólico, guardados pela instituição, constituindo a identidade daquelas crianças. Eram dados importantes para uma identificação futura, no caso de existir alguém que as quisesse resgatar, por isso, era vulgar deixarem com a criança pequenas fitas, medalhas, cruzes, escapulários, folhas e flores ou, até, um raminho de salsa,… Após a colocação da criança na roda e da respectiva marca identificativa, a pessoa que a deixava tocava a sineta e a freira porteira, a chamada a irmã “rodeira”, recolhia a criança.
O registo de cada criança era feito na altura da entrada, acompanhado da descrição dos objectos deixados e da forma como vinha “vestida”/embrulhada. Tratava-se de um verdadeiro relatório diário que era elaborado pela responsável da casa, a qual também se responsabilizava pela realização dos baptizados e pela escolha das amas-de-leite, selecionadas entre as mulheres que há pouco tempo tinham sido mães.
Quando, no acto de entrega, se encontrava um papel escrito, junto da criança, com o nome próprio ou os apelidos dos pais, conservavam-se esses nomes mas, em caso de omissão, normalmente, era atribuído ao menino ou à menina, o nome do santo(a) correspondente ao dia da sua entrada, na instituição.
Estas crianças, enjeitadas pela sociedade da época, eram fruto de relações “proibidas” ou “inconvenientes”, abandonadas pelos pais que não podiam ou não queriam ficar com elas, rejeitados pela família desinteressada pela sorte destes inocentes, vítimas da miséria extrema das comunidades e pela moral e mentalidade vigentes que não admitiam que mulheres solteiras, ou viúvas pudessem ser mães,…
No Porto existiram rodas em vários conventos, nomeadamente no de S. Bento de Ave Maria e no de Santa Clara, assim como no Recolhimento do Ferro.
A Casa da Roda ocupou no Porto outros locais, para lá do local inicial, já citado. Instalou-se no antigo Hospício de Santo António da Cordoaria (construído em 1730) e ai funcionou de 1838 a 1854, com o nome de Hospício dos Expostos do Porto que ficava situado ao lado do extinto Mercado do Peixe, local hoje ocupado pelo Palácio da Justiça.
A pobreza foi, sem dúvida, o principal motivo para o abandono das crianças. Bilhetes e cartas deixados junto das crianças dão-nos conta desta situação. Citamos o seguinte:
“Pelas chagas de Cristo lhe peço guardarem este papel junto com meu filho que, eu, se Deus me der vida e saúde, daqui a alguns meses darei o que eu puder para encontrar meu filho. Peço não o darem sem que levem uma carta igual a esta. Se morrermos sem nos vermos mais, que Deus nos junte nos Céus. Adeus meu filho pede a Deus por mim, Adeus.”
O abandono de filhos deve ter constituído um dos grandes sofrimentos, sobretudo, para as mães que não os podiam sustentar. No entanto, apesar do abandono na roda, muitas mães alimentariam a esperança de um dia poderem ter de volta o seu filho, integrando-o na família.
A Roda dos Enjeitados veio, de alguma forma, contribuir para a diminuição do infanticídio pois, segundo se regista em documentação antiga, sabemos que “[…] se achavam muitos meninos mortos assim pela praia como pelos lugares esquisitos […].”
Com o advento do Liberalismo, em Portugal, na primeira metade do século XIX, começaram a surgir outras soluções de acolhimento e protecção das crianças abandonadas para substituir o papel desempenhado pela roda, durante séculos.
Obs: Por vontade da autora e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
Fotos: pesquisa Google
01dez17
Muito interessante este relato.
Desconhecia.
A partir desta, estou me aprofundando e descobrí que meu bisavô, em 1800, na Áustria, hoje Trento, foi um Enjeitado.
Graças ao trabalho de acolhimento, cresceu, emigrou ao Brasil tornando-se uma personalidade importante no Sul do Brasil.
Boa tarde
Existe no presente e em Lisboa ou arredores, alguma dessas rodas que eventualmente não tenha sido destruída?
Obrigado
Jorge Palma
Sim foi uma obra notável este movimento para recolher crianças cujas mães sabe Deus com que sacrificio e dor os deixavam naquela roda giratória ,para que o Criador lhes envia-se uma mão amiga e assim crescerem e adotados pela nova familia.
O artigo é muito interessante. Pena que não mencione a evolução da “roda” até à actualidade.
É importante notar que, apesar da universal punição criminal do abandono de infantes, em muitos países a “roda” subsiste, inspirada em razões humanitárias de prevenção do infanticídio e de assistência.
Caro José Cardoso.
Pode usar uma vez que as fotos foram retiradas depois de uma pesquisa efetuada através do Google, ainda que algumas possam estar sujeitas a Direitos de Autor.
Cumprmentos
O Diretor
José Gonçalves
Posso usar uma das sua fotos?
Os Expostos no Porto – Uma pequena contribuição para o conhecimento deste tema:
Em 5 de Março de 1688 é feita escritura de venda, paga e quitação que fazem e dão Jerónimo Lopes e sua mulher ao Chanceler Cristovão Alves Coelho (?) e Gonçalo Ribeiro, Procurador da Fazenda, de duas moradas de Casas e pensão imposta nas mesmas, no sítio do Padrão de Santo Elói, e rua dos Caldeireiros, para servir de Roda dos Expostos, pela quantia de 448.000 réis.
Livro 78 Folha 137 transcrito na folha 212 Índice Geral de Prazos e Notas 1429 – 1780 – Cota IA-27 AHMP
Para saberem mais sobre este assunto , recomendo este artigo da autoria de Maximina Girão Ribeiro A Roda dos Enjeitados no Porto
http://etcetaljornal.pt/…/12/a-roda-dos-enjeitados-no-porto/
Não sei se te lembras de mim, mas fomos colegas no Colégio de Nossa Senhora da Esperança. Gostei muito de ler os teus artigos. Parabéns.