(REEDIÇÃO) O Etc e Tal jornal (EeTj) esteve à conversa com Armando Pinto, diretor pediátrico do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, no seu gabinete, e ficou a saber, em primeira mão, do lançamento do seu novo livro – Vivências De Um Médico Oncologista Pediátrico, Volume II . Falámos, entretanto, de alguns assuntos tabu e de áreas do seu trabalho; trabalho que as pessoas desconhecem ser da maior importância, e ainda do seu gosto pela… bateria. Uma entrevista muito interessante a que se segue…
Sérgio Silva e Sousa Mariana Malheiro
(texto) (fotos)
Quem é Dr. Armando Pinto?
(Sorrisos) “Armando Pinto! Sou um homem com mais de 60 anos, embora possa não parecer (sorrisos), casado, pai de três filhas, natural do Porto. Nasci aqui do Porto, na Maternidade Júlio Dinis, sou filho de uma família numerosa! Fui batizado na Igreja de Cedofeita, vivi em Cedofeita e estudei em Cedofeita, no liceu D. Manuel II, que se chama agora Rodrigues de Freitas. Tirei o curso de medicina aqui na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e depois fiz o internato no Hospital de Santo António – que era curiosamente o Hospital onde ia em miúdo quando precisava de alguma coisa, porque morava naquela zona. Depois saí do País por algum tempo para estagiar em França, já dentro da área da pediatria.
Ao acabar o internato e começar a exercer como especialista concorri a vários lugares. Um deles foi este, que eu agarrei, já lá vão mais de vinte anos neste serviço deste hospital e, desde 2011, que sou o diretor do Serviço de Pediatria. Já passei por dois diretores que se reformaram, entretanto chegou a minha vez, fui nomeado diretor.”
Sei que também gosta de música. No entanto, de onde vem o gosto, específico, pela bateria?
“Sempre gostei muito de música e essa é uma parte da minha vida de idade jovem. Esse gosto está ligado com um grupo de amigos e colegas do local onde morava e estudava, que também gostavam muito de música. Assim começou a surgir a ideia de fazer qualquer coisa relacionada com a música. Eu gostava muito de bateria, outro já tocava viola e outro piano, juntamo-nos e fomos pedir dinheiro aos nossos pais para comprarmos mais instrumentos. Fizemos um grupinho e, durante uns anos, andamos entretidos nas nossas horas livres, pois ainda éramos todos estudantes do liceu. Foi daí que ficou o bichinho da bateria.”
Um dia, à conversa com uma colega sua, referi o nome do Dr. Armando Pinto, à qual me disse de imediato Dr. Não! É Professor Doutor Cirurgião Armando Pinto! Que importância dá à sua carreira académica e profissional?
(Risos…) “Cirurgião não! Não sou cirurgião, sou pediatra.
Já não é possível descolar a minha vida pessoal daquilo que faço na minha vida profissional, porque eu passo, mais ou menos, dois terços do meu dia a lidar com crianças e jovens. De manhã, são as crianças aqui do instituto, de tarde estou no meu consultório a ver os meus doentes privados. Portanto, não há maneira de descolar uma coisa da outra.”
O que faz, então, com o outro terço do tempo que lhe sobra?
“O pouco tempo que tenho dedico-o à família, vivo-o de forma intensa! Depois, sou um leitor: leio jornais e livros. Gosto também de escrever e uma parte do que gosto de escrever foi já publicado em 2010, estando agora a ser publicado um segundo livro onde vou contando, de uma forma romanceada digamos assim, vivências e coisas que se passaram comigo que resultaram da interação da minha vida profissional e alguns dramas que alguns jovens e algumas crianças passam. Os livros não retratam apenas histórias relacionados com oncologia, mas uma boa parte dos livros estão relacionados com oncologia porque a oncologia é uma boa parte da minha vida profissional.”
Que impacto teve o lançamento do seu primeiro livro no círculo profissional visto tocar em alguns assuntos considerados de tabu?
“Aquilo que sei ou senti pode ser a ponta de um icebergue porque, realmente, não tenho ideia do que se passou, mas, os pais das crianças com doença oncológica que leram o livro gostaram muito e isso para mim foi muito gratificante, também muitos médicos que trabalham na oncologia pediátrica, e outros médicos e profissionais de saúde ligados à oncologia, gostaram de ter lido o livro e isso é muito importante para mim.
No que respeita aos pais: os pais viram ali refletido um conjunto de problemas que eles têm! Depois ficaram a saber – porque eles não sabiam – como é que os médicos e os profissionais de saúde em geral lidam com estes doentes e o que se passa com nós, porque não é estar aqui sentado numa secretária, receber o doente e receitar “umas coisas”… nada tem a ver com isso!
A atividade do pediatra na oncologia é o motor; é o coração da oncologia; é o que dá vida ao serviço, somos nós que fazemos o pulsar, mais rápido ou menos rápido depende de nós, não é só a questão de nós sabermos o que se passa com o doente. Isto é: o doente tem esta doença e eu tenho de fazer isto, não! É muito mais do que isso, o doente quando chega a nós, para já vem num estado emocional muito mau, ele os pais e nós temos de lidar com isso e tentar melhorar esse estado introduzindo esperança. Depois temos de tentar saber o é que o doente tem. Para isso, podemos ter de mobilizar metade do hospital! Precisamos da pessoa que vai fazer o exame, seja radiologista ou outro qualquer; precisamos que o laboratório receba o exame ou uma análise ao sangue, e tudo isso tem de ser rápido. Temos ainda de juntar toda a informação que vem de vários sectores do hospital, pegar nela e tirar conclusões, de fazer um plano de tratamento do doente e isso vai implicar entrar em contacto com os diversos setores do hospital. “

“Desde uma cama para o doente, a um tempo no bloco operatório, é necessário, para tal, articular as agendas de todos os profissionais de saúde, sejam eles um anestesista, um cirurgião ou um radiologista. Nós temos de ser um autêntico mestre-de-cerimónias! Isto quer dizer que, se eu receber um doente e lhe fizer apenas o plano de tratamento correto, mas se não juntar a esse plano, o pegar no telefone, e fazer meia dúzia de telefonemas, eu fiz… tudo mal!
Fiz tudo mal, porque se eu apenas fizer as marcações, ou seja, se apenas entrar no sistema do computador e fizer a marcação para quando houver vaga, dificilmente, haverá tratamento, e eu quero o tratamento feito para ontem e esse ontem poderá implicar algumas trocas; trocas esses que têm de ser negociadas para não prejudicar ninguém.
É neste trabalho que se gasta a maior parte do tempo aqui no instituto. Trabalho esse que as pessoas não fazem a mínima ideia que acontece, e é essa a nossa grande glória, a nossa glória é conseguir fazer um projeto de tratamento para um doente que funcione, que funcione no timing que nós queremos.
É por isso que eu digo, que só somos realmente bons se conseguirmos pôr esta máquina a funcionar, sem o pulsar esta máquina não funciona, é por isso que eu digo que somos o coração da oncologia.”
O erro médico é por si várias vezes mencionado, por quê?
“O exercício desta profissão tem de ser honesta, trabalhadora e empenhada. O médico tem de ser honesto! Não é fácil reconhecer o erro, até porque às vezes nem o estamos a ver! Por vezes nem percebemos que estamos a errar, e só descobrimos que erramos posteriormente. Isso é errar na mesma! No entanto, eu fiz o que achava melhor naquela altura… depois poderei não achar bem, mas é assim, é impossível não errar! Só não erra quem não trabalha.
Nós somos uma equipa… somos mesmo uma equipa! Nós, até por uma questão de melhorar a qualidade do trabalho, discutimos todos os dias de manhã os doentes que temos aqui, porque várias cabeças pensam melhor do que apenas uma.
Se eu recebo um doente novo na quarta-feira, na quinta de manhã apresento o doente à equipa na reunião de grupo, e pode haver alguém a apresentar algo diferente ou a acrescentar algo que está em falta.”
Não teve receio das repercussões?
“Eu acho que há coisas que devem ser pensadas e refletidas nos livros, porque é importante que se saiba que essas coisas existem, mas felizmente não foram determinantes na evolução da minha vida profissional.
Agora, que sou diretor, recebo muitos médicos a pedirem ajuda para eu tentar desbloquear algumas portas, porque indo lá eu poderei ter mais impacto e agilizar algumas situações. Por isso, neste momento, estou menos próximo dos doentes. Muito do meu trabalho atualmente é feito ao telefone a tentar desbloquear situações, porque é diferente ser um médico ou ser o diretor. Até porque, eu já estou aqui há mais de vinte anos e, digamos, que eu trato por “tu” quase todas as pessoas deste hospital. Os grandes intervenientes eu trato-os por “tu”, e isso facilita muito, desbloqueia logo um conjunto de aspetos, o serviço vale-se disso e eu utilizo todos os meios em proveito do doente e do serviço.”
O seu primeiro livro foi dedicado às mães e às mulheres em geral. Este segundo é dedicado a quem?
“Este livro é um pouco diferente. Este foca-se mais na oncologia, está mais focado nos doentes, mas as mães estão muito presentes. Este é o pacote completo… como se costumo dizer! As crianças que estão aqui internadas têm a mãe ou o pai sempre presentes 24 horas. Dormem cá, comem cá, tomam banho cá, de maneira que é impossível nós separarmos uma coisa da outra. Nós temos de tomar muitas decisões interagindo com os jovens, mas primeiramente ou outras vezes é só com os pais, pois as crianças são muito pequenas por exemplo, e em muitas situações é a mãe que está presente, pois é esta a realidade, a maioria das vezes é a mãe que está aqui, é a mãe que está de baixa profissional e é ela que está presente o tempo todo.”
Já alguma vez não conseguiu conter as lágrimas na presença de um doente, ou na presença de familiares de um doente?
“Sim, embora…” (uma Pausa) “Nós temos de estar treinados para ajudar as pessoas, e para ajudar as pessoas temos de ter arcaboiço, não temos de nos tornar insensíveis, não é nada disso… nada disso! Se eu for numa via pública e tiver um problema de saúde, não quero que os socorristas ou a equipa médica, tenham pena de mim. Quero sim, que tratem de mim e para isso é preciso cabeça fria, é preciso estabelecer prioridades, perceber o que é que o doente tem e o que é que se tem de fazer.
No entanto, a resposta à sua pergunta é sim! Não terá sido uma vez terão sido muitas as vezes que na presença de um paciente nos vêm as lágrimas aos olhos, pois claro que sim, e normalmente nem é no primeiro impacto, porque no primeiro impacto ainda não há uma relação, mas depois de estarmos meses com o doente se as coisas começam a correr pior do que queríamos ou após uma recaída, aí sim custa muito, porque aí essa família e essa criança já não são só mais um doente mas sim uma criança com quem já brincamos, uma família com quem já partilhados vivências e experiências e já há uma relação efetuada e isso inclusive tira-nos o sono.”
Qual o objetivo da sua escrita?
“Escrever não é uma atividade de um ermita que está em cima de um monte, a não ser que seja uma escrita para ele somente; que seja para guardar e não para publicar. A minha escrita é um ato de comunicação: é para as pessoas lerem e eu faço gosto que elas se emocionem com o que é para emocionar e que se riam com o que é para rir, e se há uma coisa que sempre tive é sentido de humor, é algo inato! Sou assim mesmo!
Portanto, a escrita deste livro não é para transmitir conhecimentos mas sim para transmitir sentimentos, coisas que se passaram comigo e que eu acho que vale a pena dar a conhecer, porque nós pertencemos ao género humano e os humanos gostam de trocar estas emoções, é bom estar a falar com alguém que nos está a contar alguma coisa que nos está a tocar, podermo-nos pôr no lugar dele e imaginar, podendo ser emocionante, trágico ou até hilariante.
A minha escrita tem esse objetivo, contar!
Quando estou a escrever, penso muito nas mães que vão ler o livro, nas mães, mas também nos pais. Penso muito neles! Isto é, escrevo de maneira a que essas pessoas entendam o que eu estou a dizer, não me interessa se concordam ou não, eu quero é ser percetível.
Não sou propriamente um intelectual rebuscado, com uma escrita fechada ou encriptada, não, o que eu pretendo é que toda agente entenda, desde o humilde ao mais rebuscado. Gosto de transmitir que o exercício da minha profissão não é só a prescrição médica, a atividade do profissional de saúde é complexa, que mexe com a vida pessoal daquela pessoa, da qual dependem outros, há pessoas que dependem imenso de nós, do nosso empenho.
Nós temos de ter conhecimentos, mas não basta! Do nosso engenho e empenho depende a sobrevivência daquelas pessoas, daí termos de estar empenhados. No entanto há o outro lado, o outro lado é que nós sofremos com isso e às vezes falhamos, e ficamos furiosos por termos falhado, somos pessoas com conhecimentos e estrutura.
Porém, é bom que se diga que dentro do quadro europeu nós não estamos mal, o Sistema Nacional de Saúde é para melhorar, sim senhor, mas não é mau! Espero é que não piore, tenho medo que piore, porque tenho receio que haja um desleixo da tutela, aproveitando-se do facto de haver sistemas privados a funcionar, e os sistemas privados, nomeadamente na oncologia pediátrica, não dão resposta alguma, mandam-nos os doentes que lá aparecem, eles transferem-nos para cá, o que é bom, porque é aqui que estão os profissionais treinados para tratar essas doenças. O Sistema Nacional de Saúde não pode olhar a despesas para que nós possamos fazer melhor o nosso trabalho.
Acha que as farmacêuticas estão a lesar o Sistema Nacional de Saúde?
“Acho que há um aproveitamento; um inflacionar dos preços dos fármacos oncológicos?
Vou ser muito direto: acho que sim! E penso que que o Ministério da Saúde também o acha, não sei é como fazer para melhorar; para combater isso a nosso proveito, a proveito do doente! Realmente, hoje em dia, estão a surgir um conjunto de medicamentos novos que são muito caros, mesmo muito caros, e nós estamos convencidos que esses medicamentos são muito úteis para o doente. Estamos convencidos também que o preço que é cobrado por esses medicamentos não é o preço justo, não é o preço real, estão a pedir demais aproveitam-se da utilidade do medicamento.
Como se vai resolver? Acho que vai ser preciso, a nível europeu, haver um movimento que realmente consiga pôr ordem. Já se têm feito coisas boas, os IPO do Porto, Coimbra e Lisboa juntaram-se para negociar com as farmacêuticas para que baixassem os preços e isso foi bom. Mas, é certo que terá de passar pela comissão europeia, porque não é justo um doente ter um medicamento e não o poder tomar porque não o pode pagar.”
Visto o EeTj ser o primeiro órgão de comunicação social a ter conhecimento do lançamento do se segundo livro, perguntamos para quando a apresentação desse livro?
A apresentação será dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, será aqui no nosso anfiteatro do IPO, pelas 17 horas e será aberto ao público.”
01mar18