António Pedro Dores
Quando se vê as barbas do vizinho a arder, põem-se as nossas barbas de molho
(ditado popular)
Há que pensar a divisão de poderes do estado, executivo e judicial, quando em Espanha no Brasil se passa o que se passa. A separação de poderes está a servir para o poder executivo evitar a discussão política das formas de fazer justiça e para o poder legislativo intervir diretamente na política, fazendo batota na secretaria, deitando abaixo quem representa orientações políticas incómodas. Se os políticos de serviço beneficiam da imunidade própria da atividade política, porque é que os cidadãos que querem fazer política ou voltar à política não hão-de beneficiar dessas mesmas imunidades? Quando abandonarem o cargo para que forem eleitos logo os tribunais se voltam a encarregar dos seus assuntos. Quando estão em campanha ou foram eleitos, os tribunais deveriam ser obrigados a suspender os processos. Sob pena de se estarem a multiplicar os presos políticos.
Aqui reflete-se sobre o caso brasileiro.
Maria Júlia Karam é uma juíza brasileira jubilada conhecida por ser a cara da associação dos polícias contra a guerra contra a droga e por textos contundentes contra as esquerdas e os feminismos punitivos. Passou por Lisboa e aninou um debate sobre feminismo punitivo no dia 10 de Abril.
O argumento foi no sentido de denunciar práticas, veiculadas na ONU, quando se aceita usar os direitos humanos como forma de legitimar punições. Segundo a jurista, os direitos humanos são (ou deveriam ser) uma forma de conter o poder punitivo do estado. Pela singela razão de que o poder punitivo dos estados é, ele próprio, o principal alvo de todas as convenções internacionais de prevenção da tortura. Portanto, das duas uma, os direitos humanos ou são um instrumento legal de contenção dos poderes abusivos dos estados ou são mais um instrumento intrusivo do estado, que frequentemente acaba em abusos.
Como são a criminalização da pobreza, do ativismo social e político, a imposição de condições de vida indignas em estabelecimentos do estado ou autorizados pelo estado para recolha de crianças, velhos e condenados. Há uma aberrante manutenção de pequenos estados dentro do estado, com leis próprias não previstas ou contra a lei geral, a que se chamam instituições totalitárias ou concentracionárias.
Lógica, racional, formal, legalmente, os direitos humanos não podem servir dois senhores contraditórios entre si ao mesmo tempo. Ou são um modo de controlar os abusos do poder dos estados ou são um instrumento dos estados para ajudar legitimar as práticas do estado, em que frequentemente se cometem os abusos.
O neoliberalismo tem promovido o relativismo precisamente para poder escapar entre os pingos da chuva do direito criminal, nas suas derivas criminosas (Perkins, 2004; Woodiwiss, 2005). O direito usado para um fim e o seu contrário serve bem a diluição do direito e abre as oportunidades da legalização das discriminações sociais e políticas, à medida da sensibilidade dos governantes. Para os próprios e os amigos a impunidade; para os inimigos a ausência de recurso ao direito. Este não é um problema brasileiro, mas global (Jakobs & Meliá, 2003).
Infelizmente, constata Maria Júlia Karam, as esquerdas e os movimentos feministas não só toleram entre si o punitivismo e o relativismo, mas, estupidamente, pretendem usá-lo em proveito próprio. Tal como os governantes, imaginam, ingénua ou perversamente, que os seus amigos não devem ser presos: a prisão é boa para os seus inimigos.
O caso do Lula é exemplar. Estive em Porto Alegre em Janeiro de 2002, vésperas da primeira eleição do Lula, no Fórum Social Mundial. Procurei discussões sobre prisões. Encontrei uma mesa sobre a “criminalização dos movimentos sociais”, organizada … pela Polícia Federal. Na presidência da mesa José Dirceu, braço direito de Lula, meses depois condenado no quadro do caso do mensalão, caso de corrupção política (a defesa política alegou ser esse o procedimento habitual e jamais condenado do senado brasileiro, a que o PT aderiu em vez de criticar e denunciar).
Em 2001, estavam na mesa também Adolfo Pérez Esquivel, argentino Nobel da literatura, e um advogado do Movimento dos Sem Terra, que vivia clandestino e tinha experimentado a tortura nas prisões da democracia brasileira. Perguntei-lhes se o novo regime brasileiro, sob a liderança do PT e Lula que se entrevia, acabaria com as prisões.
O Nobel respondeu que não. Dirceu sorria, calado. O advogado explicou-me: “onde vamos meter os que nos andaram a perseguir?”
O que fazer com o direito criminal foi um dos temas abandonados pela direcção política das presidência do Lula. Seguiram a máxima do Clinton “É a economia, estúpido!” Ignoraram o poder judicial. Lixaram-se, pessoal e politicamente.
Durante o tempo das presidências do PT não tiveram tempo para pensar no assunto? Nem sequer se lembraram de controlar o Supremo Tribunal de Justiça, assegurando que os juízes não iriam perseguir o Lula? Não se lembraram de fazer legislação especial que lhes assegurasse imunidade contra as perseguições judiciais? Imaginaram que o racismo, a misoginia, as discriminações quotidianas das mais variadas espécies e feitios despareceriam só porque foram poder de estado durante uns anos valentes e economicamente bem-sucedidos? Imaginaram mal. Péssima teoria. Sofrem hoje com isso. Sofre também o povo brasileiro, sem um seu representante à altura, bastante abandonado por ter acreditado (poderia fazer diferente?) em quem tirou da miséria milhões de concidadãos.
No Brasil, como nos EUA, as reacções do império, as reacções dos velhos beneficários dos impérios, racistas e implacáveis, são evidentes. Só não o são na Europa, para os europeus, porque preferimos desenhar de nós próprios imagens benevolentes, seguindo aquela velha tradição dos que discutiam o sexo dos anjos enquanto Constantinopla era conquistada pelos muçulmanos.
Saberemos nós aprender com a lição? Tenho as maiores dúvidas. A esquerda punitiva domina e não tem sequer oposição. Imagina que é a economia que luta contra o estado. Imagina que a direita representa a economia e a esquerda representa o estado. A economia é má mas necessária, para dar empregos, sempre a imaginar do mesmo modo que pensam os capitalistas. O estado é bom em todas as formas porque, imaginam, é a única coisa que se pode opor à ganância da economia que destrói o planeta e as possibilidades de sobrevivência da espécie humana.
Na realidade o neoliberalismo nunca prescindiu do estado. Continua a usá-lo a seu favor, todos os dias, como mostra bem o esforço do estado para salvar um sistema financeiro global falido. Usa-o também, cada vez mais, para punir os dirigentes que não têm a proteção social das elites. Precisamente porque a derrocada do sistema, em curso, precisa de apresentar bodes expiatórios para justificar o fracasso e manter o sistema.
Lula não é a única vítima: é a mais popular. Centenas de milhares de brasileiros estão presos. O Brasil tornou-se o terceiro país do mundo com mais presos, depois de décadas ininterruptas de crescimento do (ab)uso da criminalização dos mesmos do costume. Grande parte desse tempo sob a presidência do PT.
Há que repensar a articulação de poderes do estado, executivo e judicial. Podem as leis servir fins de reforço dos poderes do estado? Ou devem as leis servir para controlar os poderes de estado? Devem os juízes governar ou opor-se a práticas ilegítimas de governação? Deve a luta contra a corrupção ser usada como pretexto para exercitar o músculo penal do estado? Ou deve o combate à corrupção ser uma prioridade política?
O núcleo duro da perversidade da situação atual, no Brasil, em Espanha e no resto do mundo, é que a corrupção organizada pelos governos não pode ser combatida pelo poder judicial – mas é esse o apelo para a desresponsabilização dos políticos e partidos corrompidos. Quando se apanha um ou dois ou dez, todos os outros continuam a fazer o mesmo, business as usual. A velocidade da justiça, como se costuma dizer, não acompanha a velocidade do crime. Em sentido inverso, o papel de garante dos direitos fundamentais que caberia aos tribunais é regulamente violado pelas tendências de encarceramento em massa, faz muitos anos. Agora, no Brasil em Espanha e noutros lugares, os usos políticos do mau uso do sistema penal tornam-se evidentes. A favor do neoliberalismo desesperado e destruidor. De que vamos tendo notícias todos os dias.
Referências:
Jakobs, G., & Meliá, M. C. (2003). Derecho Penal del Enemigo. Madrid: Cuadernos Civitas.
Perkins, J. (2004). Confessions of an Economic Hit Man. Berrett-Koehler Publishers.
Woodiwiss, M. (2005). Gangster Capitalism: The United States and the Global Rise of Organized Crime. London: Constable
Foto: pesquisa Google
01mai18