Maximina Girão Ribeiro
Depois de ter assistido a um excelente concerto comentado e historicamente contextualizado, que se realizou na recentemente renovada capela do Cemitério de Agramonte, no Porto, através do qual se homenagearam as vítimas do incêndio do Teatro Baquet, decidi escrever sobre esta tragédia ocorrida na cidade há, precisamente 130 anos. Antes, porém, gostaria de expressar a minha opinião sobre a forma serena, mas glorificante, como o Porto dos nossos dias soube recordar a memória de um facto que teve lugar, em finais do séc. XIX.
Esta homenagem constou de um relato histórico do acidente (pela historiadora Ana Maria Liberal), seguida de um concerto que contou com a participação de uma pianista (Olga Amaro) que acompanhava uma cantora lírica (a soprano Marina Pacheco). As músicas que ouvimos, provenientes de zarzuelas e operetas, foram as mesmas que se tocaram no Teatro Baquet, durante os 29 anos da sua existência, incluindo as que se ouviram na noite da tragédia, onde pereceram cerca de 120 pessoas.
Terminado este concerto de homenagem, iniciativa integrada no XIII Ciclo Cultural dos Cemitérios do Porto, seguiu-se uma visita ao monumento evocativo da tragédia, erguido no cemitério de Agramonte, um significativo mausoléu, construído a partir de materiais recolhidos dos escombros do edifício do Teatro Baquet: são pedaços de ferro torcidos pelo fogo e uma enorme coroa de martírios, também em ferro, simbolizando a morte das vítimas. Confesso que foi uma forma digna de lembrar um acontecimento que parece ainda pairar como reminiscência, em muitas famílias da actualidade.
Pessoalmente cresci a ouvir a história desta tragédia, contada por minha avó materna, uma velha professora primária que relatava o episódio, como se de um verdadeiro milagre se tratasse, pois, um dos seus irmãos, abastado comerciante, morador na rua do Freixo, tinha comprado bilhetes para a sessão do dia 20 de Março mas, nem chegou a sair de casa, pois a sua mulher começou a sentir dores de parto. Ora, o incêndio teve lugar na noite de 20 para 21 de Março de 1888 e, nessa noite, nasceu-lhes um filho…
Revisitando o passado, lembramos que o Teatro Baquet deveu o seu nome ao portuense António Pereira que, muito jovem foi para Espanha, onde aprendeu o ofício de alfaiate, facto que o levou a Paris, cidade que na época era considerada a capital da moda. Foi aí que acrescentou o apelido “Baquet”, talvez para soar melhor aos ouvidos dos seus clientes. No Porto, montou o seu atelier, na rua de Santo António, nº 157 (actual rua de 31 de Janeiro) e, como era também proprietário do terreno contíguo ao atelier, usou esse terreno para construir um teatro a que deu o seu apelido Baquet. O edifício ficaria na vizinhança do Teatro do Príncipe Real (actual Teatro Sá da Bandeira).
A construção do Teatro Baquet, cuja planta parece ter sido inspirada na da Opéra Comique de Paris, foi bastante rápida, apesar das características do terreno, com um enorme declive, entre as duas ruas (rua de Santo António e rua Sá da Bandeira). O edifício ficou com duas fachadas, sendo a principal, a da Rua de Santo António (onde hoje se encontra o edifício da Caixa Geral de Depósitos), toda em granito, encimada por quatro estátuas de mármore que representavam, respectivamente a Comédia, a Música, a Arte e a Pintura.
O Teatro foi inaugurado, informalmente, a 13 de Fevereiro de 1859, no Carnaval, com um baile de máscaras, sendo a inauguração solene a 16 de Julho do mesmo ano, com o espectáculo de estreia, “O segredo de uma família”, comédia em 3 actos da autoria de José Carlos Santos.
O Teatro Baquet tornou-se um lugar de bom gosto e requinte para os portuenses, com um interior agradável e uma programação atraente, sendo frequentado pela gente grada da cidade e por lá passaram os grandes nomes da cena portuguesa da época: Emília das Neves, Lucinda Simões, João Anastácio Rosa e ainda Augusto Rosa, que ali se estreou em 1872.
Foi durante o espetáculo de benefício do actor Firmino Rosa, quando se representava a ópera cómica “Os Dragões de Villars”, que deflagrou o incêndio que tudo destruiu. O Maestro Ciríaco Cardoso dirigia a orquestra e a sala tinha a lotação esgotada, pois deveriam estar presentes cerca de seis centenas de espectadores. Aconteceu que, com a mudança dos panos de fundo, entre duas cenas, um dos panos roçou numa gambiarra que fornecia a iluminação a gás e, num ápice, tudo se incendiou nos bastidores. Embora o gás tivesse sido logo cortado, isso não foi o suficiente, pois a propagação do fogo estendeu-se a todo o espaço, dado que existiam no interior, muitos materiais inflamáveis: talha dourada, madeira do soalho, sanefas e reposteiros,… Como tudo ficou às escuras e inundado de intenso fumo, rapidamente se gerou o pânico, com o fogo a alastrar com velocidade. No meio deste cenário dantesco, os gritos e as tentativas de fuga eram actos desesperados, pois as saídas, segundo ouvi contar, tinham as portas a abrir para dentro e as pessoas que aí se acumulavam não possibilitavam a abertura das mesmas.
O comandante dos Bombeiros Voluntários, o célebre Guilherme Gomes Fernandes deixou registadas, no relatório que redigiu ao administrador do Bairro Ocidental, as seguintes considerações:
“[…] sabia que um teatro, desde que o fogo lhe pegasse, ardia depressa e não havia meio de o salvar; mas o que não sabia era que ardesse tão rapidamente; e desta vez ardeu tão rapidamente, porque havia a favorecer a combustão o ter durado o espectáculo mais duas horas que o costume, estar tudo velho e carunchado e a temperatura estar elevadíssima.”
A notícia da tragédia espalhou-se pelo país e gerou uma onda de solidariedade com subscrições públicas de apoio à família das vítimas do incêndio. Assinalamos que poeta Guerra Junqueiro escreveu o célebre poema “A lágrima”, impressa pelo tipógrafo Costa Carregal, precisamente para que o produto da venda se destinasse ao socorro dos familiares que pereceram no incêndio.
Ao Porto deslocou-se a rainha D. Maria Pia de Sabóia, casada com o rei D. Luís, a qual, mal soube do triste acontecimento, partiu de comboio, numa noite de temporal, vestida de luto e acompanhada pelo infante D. Afonso, duque do Porto, para homenagearem as vítimas e visitarem alguns sobreviventes.
As memórias devem ser perpetuadas: as boas e as más. A cidade viveu tragédias que marcaram um tempo e o espaço onde aconteceram e, todo esse imaginário passou de geração em geração, como pertença e característica de uma população.
Fotos: pesquisa Google
Obs: Por vontade da autora e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
01jul18
Adorei este artigo sobre o triste desfecho do Teatro Baquet. Um texto muito completo e ilucidativo do papel deste teatro na vida cultural da Cidade e também da tragédia que pôs fim a este edifício! Obrigada por me terem dado a conhecer a história deste teatro de uma maneira tão pormenorizada.
Fantástico texto!
Cumprimentos