José Lopes
As mudanças politicas que pairam sobre os próximos tempos no Brasil, como resultado da eleição de Jair Bolsonaro, ao derrotar na segunda volta das presidenciais (28 de outubro) Fernando Haddad, cuja aglutinação à esquerda de diferentes forças plurais e democráticas foi claramente insuficiente face à esmagadora dinâmica do medo, retrocesso social e civilizacional, tal o incentivo à homofobia, ao racismo e à vingança sobre os pobres e minorias, que permitiu o candidato da extrema-direita chegar à presidência do maior país da América Latina com mais de 55% dos votos, trazem à memória, não só o longo e cruel historial de trabalhadores vitimas do saque das riquezas deste país, mas também, recorrendo à literatura de Jorge Amado, o seu romance “Os Subterrâneos da Liberdade”.
Uma trilogia que retrata a saga das lutas do povo naquela época, contra a ditadura dos militares que parece agora tão pouco distante, trazendo assim à memória os “caboclos” assassinados no vale do rio Salgado, em Mato Grosso, pela Polícia e pelos jagunços dos coronéis, segundo o romance do escritor brasileiro. “Caboclos” que são hoje os Trabalhadores Sem-Terra que continuaram a tombar mesmo em período de democracia e cuja luta pelo direito à terra para sobreviver está ainda mais ameaçada pela corrente intolerante bolsonarista.
Ainda que previsíveis e esmagadores, face aos quase 45% de Haddad, os resultados da vitória de forças obscurantistas, com particular influência cristã evangélica e lobistas de armas, estilo Trump, não deixam de ter um cariz popular, mas inquietante, assente no populismo, na xenofobia e sobretudo na ameaça às liberdades e à democracia. Mudanças em nome do combate à corrupção, que deixaram sinais ameaçadores a direitos fundamentais, considerando o incentivo a fundamentalismos, e o recuo no tempo a episódios ainda bem vivos na memória de várias gerações, como consequência do regime militar e da ditadura de que o Brasil se tinha libertado há pouco mais de três décadas, mesmo com todas as contradições neste país gigante, em que se repetem pelos vários cantos do interior brasileiro, com personagens que resistem na luta pela terra, tal como as da obra de Jorge Amado em “Os Subterrâneos da Liberdade”, em que os mesmos sonhos da luta do Araguaia trazem à memória pesadelos aos senhores das terras e do poder, que voltam a levantar cabeça nesta nova fase política.
Enquanto se ajustam propostas politicas desenhadas por generais reformados, que os eleitores objetivamente não tiveram acesso em período de campanha, nem debate entre diferentes projetos políticos. E entretanto se ultimam retoques para formação de um executivo com lugares prometidos a ex-militares e aos próprios filhos do novo presidente, em que, algumas das peças do xadrez de Bolsonaro, poem a nu uma espécie de jogo viciado, eventualmente decisivo para o desfecho que retirou estrategicamente do caminho o candidato que era apontado como potencial vencedor. Inácio Lula da Silva, o ex-metalúrgico, sindicalista e presidente, continua preso no âmbito do processo Lava Jato liderado pelo juiz Sérgio Moro, que vai ser o ministro da Justiça ainda que a legislação brasileira proíba os magistrados de exercerem atividade político-partidária. Uma nomeação que levou mesmo o Conselho Nacional de Justiça brasileiro a solicitar explicações a este juiz sobre a sua disponibilidade para integrar o governo, quando é responsável pela investigação e prisão de Lula. Esta cruzada justiceira à revelia da democracia só pode ser verdadeiramente inquietante.
Com os anúncios setoriais feitos pelos previsíveis governantes bolsonarios, os pesadelos e sacrifícios do povo vão sendo conhecidos, ainda que fora de tempo, uma vez que as eleições já se realizaram, e o impulso em aderir a uma onda de indignação e esperança na perspetiva de uns eleitores, e o desejo de vingança e regresso ao passado de exploração de tantos outros setores da sociedade brasileira. Se para a economia a escolha recaiu sobre Paulo Guedes, um liberal da Universidade de Chicago que se propõe repetir politicas como a que deixou no Chile um rasto de miséria. Enquanto ao nível da segurança, nem mesmo os mais de 60 mil homicídios ocorridos no ano passado, fizeram Bolsonaro abdicar da absurda ideia de armar a população e liberalizar o porte de armas. Um tema que ironicamente, levou entretanto uma maioria de eleitores, a manifestar numa consulta pública do Senado Federal, oposição ao regresso das armas como solução para o problema da segurança pública do País.
Não menos inquietantes são as linhas traçadas para a Amazónia e meio-ambiente em que ao estilo Trump questiona as evidências científicas sobre o aquecimento global e privilegia polémicas explorações da Amazónia como o risco do seu desmatamento, independentemente das consequências ambientais. Políticas de gestão da Amazónia que podem afrontar povos indígenas, que não podem deixar de estarem em estado de alerta, quando Bolsonaro prometeu não demarcar mais reservas indígenas, ao mesmo tempo que defende abrir as reservas existentes para mineração, numa atitude de desrespeito pelas suas tradições.
Na linha da afronta do presidente americano na região, o brasileiro de imediato lançou-se no ataque a Cuba, acusando os médicos deste país a trabalharem no Brasil no âmbito do programa “Mais Médicos”, como “guerrilheiros disfarçados”, e que ia “mandar todos esses médicos comunistas para Cuba”. A resposta cubana não se fez esperar, retirando os seus médicos do país em que ficaram sujeitos à intolerância racista, deixando milhões de brasileiros sem médico como consequência das ameaças do novo presidente que, entretanto acusa Cuba de irresponsabilidade, não medindo as suas próprias responsabilidades, mesmo antes de tomar posse em janeiro.
Entre muitas destas abruptas mudanças politicas que pairam sobre os próximos tempos no Brasil, como resultado da eleição de Jair Bolsonaro, o trabalho e os direitos laborais estão preocupantemente debaixo de fogo, quando Bolsonaro e a equipa a que está a dar forma, se propõe extinguir o Ministério do Trabalho, propondo incorporar as responsabilidades deste ministério por outros superministérios. Um ataque aos trabalhadores e à sua organização sindical, para retomar o caminho do trabalho sem direitos, dos milhões de desempregados e do trabalho escravo assim facilitado pela desagregação do Ministério do Trabalho, quando se vislumbram perseguições politica a funcionários públicos com a chamada “insuficiência de desempenho” para facilitar o despedimento de opositores. Uma anunciada medida verdadeiramente revanchista, imbuída de um certo sadismo para agravar a pena de prisão de Lula, o sindicalista cujo exemplo na luta operária e conquistas de direitos e dignidade no trabalho, através das grandiosas e determinantes greves e manifestações que, poderão ser resgatadas da memória coletiva para resistir à ofensiva da extrema-direita nesta nova fase politica, em que, até reler “Os Subterrâneos da Liberdade” pode ser útil, trazendo à memória os “caboclos” que tombaram e foram eternizados na luta militante e nesta obra de Jorge Amado.
Foto: pesquisa Google
01dez18