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Carta aberta a Marcelo, a respeito dos sem-abrigo

António Pedro Dores

O presidente Marcelo Rebelo de Sousa, na sua caridade cristã, determinou que havia de conseguir acabar com os sem-abrigo em Portugal até 2023. Reconheceu, louvemo-lo por ter dado conta desse fracasso, ser tarefa impossível. Não por ser um espaço de tempo curto, mas por os sem-abrigo não serem uma das muitas raças em extinção: há jovens a entrar em situação de sem-abrigo e há quem, perante as solicitações dos serviços sociais competentes, recuse deixar de ser sem-abrigo.

Não é o primeiro caso de fracasso de auto-determinação de políticos em altos cargos. Assunção Esteves, anterior presidente da Assembleia da República, encheu os seus discursos com as prisões e os prisioneiros, numa época caracterizada por ter interrompido uma tendência de redução da sobrelotação crónica das prisões, que só voltou a recuperar depois da sua saída do cargo. Manifestou intenção de marcar o seu mandato com algum tipo de acção política a respeito do assunto. Apenas ficaram as prisões pejadas de gente.

De uma forma menos individual, o Bloco de Esquerda anunciou, há mais de um ano, ir propor uma estratégia nacional para a erradicação da pobreza infantil. Estudos divulgados recentemente apontaram para 11% de crianças a passar fome e cerca de um terço com limitações alimentares, número próximo daquele que foi divulgado no tempo da Troika pelas escolas, que não fechavam as cantinas por saberem que as refeições que ali disponibilizavam eram, para muitos meninos e meninas, a única alimentação que ingeririam.

Porque é que é impossível aspirar uma sociedade sem sem-abrigo e sem crianças com fome? Será isso parte da condição moderna? Haverá sociedades sem sem-abrigo e em que as crianças são alimentadas?

O mais estranho neste assunto é a falta de respostas das miríades de ciências e serviços sociais existentes. A ponto de as boas intenções do presidente terem podido florescer de maneira irrealista: tomou por objectivo filantrópico emblemático de mandato uma impossibilidade. Tais ciências e serviços já sabiam – porque andam há tantos anos no terreno – que não é possível acabar com os sem-abrigo. Porque é que não informaram Marcelo de início? E porque terá agora reconhecido a impossibilidade?

As ciências e os serviços sociais caracterizam-se, de facto, por falta de crédito enquanto sabedoria, sobretudo para os políticos que preferem ideologias a factos. Preferem manipular o futuro do que atender às necessidades imediatas das pessoas. A par da falta de crédito das ciências sociais e do alheamento dos políticos relativamente à vida quotidiana, os serviços sociais constituíram-se em sector de actividade com monopólio para cuidar do lixo humano produzido pelas sociedades modernas. Sector acusado de criar armadilhas de pobreza, isto é, reproduzir para causa própria, para alimentar empregos no sector, os pobres que são a justificação das lutas contra a pobreza. Sim, a corrupção não é um monopólio dos políticos: é um mal muito espalhado nas sociedades actuais, em que as mentiras são banalizadas e naturalizadas, por exemplo, como mensagens comerciais, e as verdades encobertas no processo. O que atingiu o hiperactivo Marcelo, leitor de direito mas distante das ciências sociais.

Se houvesse uma cultura de responsabilidade, também no sector social, haveria de haver responsabilização de quem conduziu o Presidente a ideias impraticáveis. Admitindo que tal responsabilização pode salpicar muita gente, ao menos que o episódio servisse para denunciar um evidente conflito de interesses: quem vive da pobreza não deveria ter a cargo o combate à pobreza.

A irrelevância cognitiva e política das ciências e serviços sociais dedicados à pobreza pode explicar o fracasso de Marcelo. O presidente não pensou que houvesse alguma informação útil nas ciências sociais sobre a irredutibilidade dos sem-abrigo, não conhecia aqueles que insistem a viver como sem abrigos, quiçá sendo milionários no banco. Mais tarde, descobriu que os serviços sociais têm o poder de impedir a realização de finalidades que lhe pareceram, inicialmente, relativamente fáceis de conseguir.

A questão, então, será, como explicar a desistência do político de fazer a sua obra de caridade?

O que explica a sua desistência, implícita na assunção do fracasso pessoal, é a irrelevância política dos sem-abrigo, a que devemos juntar a dos presos e a das crianças que passam fome, entre outros modos de vida incompatíveis com a dignidade humana e sem representação nos órgãos de soberania.

A informação de haver crianças com fome em quantidades astronómicas em Portugal não mobiliza ninguém, a não ser o jornalista que faz o reporte da situação. Mas essas crianças com fome, como adquirem capacidades e competências para viver em sociedades competitivas? A resposta é simples: não as adquirem, por toda a vida. Porque é materialmente impossível de outro modo. O que acontece com essas crianças, à medida que crescem e se tornam adultas? Vão alimentar os números de analfabetos, que sempre foi enorme em Portugal, comparado com as estatísticas de outros países europeus e se pensou que o 25 de Abril haveria de reduzir a zero, com o desaparecimento dos mais velhos que sofreram as agruras do fascismo.

Vão alimentar as prisões, onde cerca de um em cada quatro presos, provavelmente mais, foram crianças abandonadas pelas famílias e tomadas pelos sistemas sociais, públicos e privados, de acompanhamento de crianças e jovens em risco. Foi precisamente um pequeníssimo estudo capaz de dar um número mais exacto à população prisional decorrente destes dramas sociais que a então presidente da Assembleia da República interessada em assuntos prisionais recusou apoiar. Talvez por não ser sua intenção saber o que se passa.

Senhor Presidente da República,

Não abandone a causa dos sem-abrigo. Ao invés, compreenda como as crianças com fome, os ciganos que desenvolveram uma cultura sem-abrigo multisecular, os prisioneiros, os analfabetos, os imigrantes, são tudo a mesma gente: o núcleo duro de que lhe falaram. São os alvos de estigma sociais alimentados pelas sociedades e pelos estados modernos, cúmplices, usados como primeira arma política pelos fascistas de todas as matizes. Servem como bodes expiatórios para descarregar o ódio e o ressentimento das pessoas obrigadas todos os dias a trabalhar para quem as trata mal.

Quando se trata menos mal as pessoas, as prisões são aligeiradas.

Deveremos nós continuar a fazer mal uns aos outros, alegrados pelo facto de não termos sido nós quem caiu mais fundo?

Se a sociedade é incapaz de acabar com os sem-abrigo que ela mesma criou, que raio de sociedade, que raio de política, o senhor presidente está a defender e a promover?

Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

Foto: pesquisa Google

01fev19

 

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