As crises na arte xávega, pesca artesanal costeira que foi determinante na consolidação secular de alguns povoados piscatórios ao longo da costa litoral, são há muito uma realidade socioeconómica com diferentes implicações e transformações sociais nas famílias que durante várias gerações dependeram do mar, bem como ao nível do património cultural, paisagístico e urbano que o tempo foi moldando com a própria evolução da linha de costa, restando apenas memórias de um setor económico que durante séculos foi fundamental para a sobrevivência dos povoados concentrados no litoral a exemplo da praia do Furadouro, que assistiu recentemente em silêncio à partida do barco “Jovem”, que vinha resistindo, ainda que simbolicamente, à dura missão de preservar a tradição da arte xávega nesta zona da costa de Ovar.
José Lopes
(texto e fotos)
O fim da atividade da arte xávega no Furadouro há muito estava anunciado e já nos anos 60 tinha sido cenário natural para a rodagem do filme “Mudar de Vida” de Paulo Rocha. Durante as últimas décadas, foram várias as tentativas de pescadores para resistir à decadência deste tipo de faina e às dificuldades e custos elevados para manter empresas de companhas de pesca que operavam em toda a costa ovarense. No entanto, viria a ser exatamente o Furadouro, com todo o seu historial no desenvolvimento da industria de pesca e conserva, que acabaria por assistir à inglória agonia da arte xávega, com os últimos barcos que ali trabalhavam a apodrecerem em terra (Srª da Graça e Deus Te Salve), restando mesmo só, um exemplar das gerações de barcos Srª da Graça numa rotunda desta praia.
Quem se negou a ter o mesmo triste fim em terra no Furadouro, foi o proprietário do barco “Jovem”, a única companha que nos últimos anos estava ali a pescar e que neste novo ano procurou em São Jacinto melhor sorte com o peixe, o que não vinha acontecendo em Ovar. À decisão da mudança de pesqueiro, também não são alheias as faltas de condições de apoio à atividade da pesca no Furadouro, em que os barracões em que eram guardados equipamentos como tratores, eram vandalizados, resultando em roubos de materiais, que nunca mereceram do Município medidas concretas, segundo criticas deixada pelo proprietário do “Jovem”. Embarcação que trás igualmente à memória um dos mais graves naufrágios no sul do Furadouro em maio de 2013, onde acabaram por perder a vida dois pescadores.
Este fim há muito anunciado da arte xávega no Furadouro tem a particularidade de ocorrer, quando o Município de Ovar reconhece estar a concluir um programa de potenciais apoios a subsídios para esta arte de pesca artesanal, com o objetivo de manter o drasticamente reduzido número de barcos característico desta arte, bem como atrair mais alguns. Uma aposta do pelouro da Cultura em que se insere também a candidatura da Arte Xávega a Património Cultural Imaterial de Portugal, iniciado em 2016.
Independentemente dos resultados práticos que venham a surgir das iniciativas do Município para salvar ou reativar a atividade da Arte Xávega no concelho de Ovar, os ciclos de crise vividos há mais de um século na pesca do Furadouro, não deixam nos tempos atuais, grande margem de recuperação de uma arte que nas últimas décadas deu sinais de não resistir, nem mesmo como vertente de património cultural, ainda que, com o mal recompensado oficio de pescadores, que, como escreveu Raul Brandão, em “Os Pescadores”, referindo-se às contradições da sociedade em desenvolvimento, “cultivar o mar é uma coisa – é oficio de pescador; explorar o mar é outra coisa – é ofício de industriais”. Restam cada vez mais só memórias, que sustentam pelo menos os propósitos da candidatura a Património Cultural Imaterial que aguarda aprovação.
Entre algumas das memórias sobre a importância socioeconómica que desempenhou a atividade da pesca no Furadouro, destacam-se, de obras como “Datas da História de Ovar 922 – 2005, de Alberto Sousa Lamy, alguns elementos históricos com referencias à evolução da atividade da pesca costeira durante o último século e a sua relação com o desenvolvimento e consolidação do povoado no Furadouro. Memórias que este historiador aborda nas suas diferentes vertentes, referindo particularidades das dinâmicas da atividade da arte de pesca, que em 1884, um ano antes de uma “grande penúria na costa do Furadouro”, a novidade foi ter começado a trabalhar, “com 60 homens e 10 juntas de bois, a companha do Manuel Pinto. Para o Padre João Vieira de Resende foi o político aveirense Manuel Firmino de Almeida Maia quem primeiro substituiu nas suas companhas da costa de São Jacinto o arrasto ao cinto pela tracção do gado bovino; para o Padre André de Lima «parece que foi o Morgado de Paramos o primeiro que aplicou os bois à tiragem das redes». Foi provavelmente neste ano que as artes grandes (arrasto ao cinto) começaram a sê-lo pela tração do gado bovino.”
Nos anos seguintes ao da grande penúria que se abateu na costa do Furadouro em 1885, em que exerciam atividade companhas como: Senhor dos Aflitos, Senhor dos Esquecidos, S. Pedro ou S. Luís. Chegou a registar-se em junho de 1890 uma contenda entre as companhas de S. Pedro e S. Luís, que, “bateram-se à pedrada, no alto mar, o que ocasionou ferimentos em três pescadores”, regista este livro de Alberto Sousa Lamy.
Sobre este mesmo ano (1890), o historiador referiu o resultado de um “Inquérito Industrial”, em que se verifica “que o Furadouro tem 5 companhas, 865 pescadores, 14 barcos grandes e 21 pequenos para a pesca do pilado, e 25 arrastos de sardinha.” Acrescentando ainda a componente da construção naval em que, “todos os barcos grandes que se usavam na costa do Furadouro e nos restantes portos do concelho, bem como aqueles que se empregavam nas costas de Paramos, Espinho, Torreira e S. Jacinto, eram construídas em Ovar, onde também se faziam alguns que serviam nas costas de Ílhavo (Costa Nova do Prado), Areão e Mira”.
Atividade industrial que incluía a construção de bateiras usadas por pescadores do concelho e mesmo de S. João da Foz ou Afurada. Igualmente produzidas em Ovar eram as diferentes artes de redes, como as do arrasto da sardinha usadas na costa, “com fio de maior bitola fiado em Estarreja e Cortegaça”. Um tempo em que o Furadouro “expede grande quantidade de sardinha, em cestos e barricas para a província do Douro (especialmente para o concelho da Régua), e porção, que não é diminuta, em barricas para o Brasil pela barra do Tejo”. Como realça ainda esta obra, “terminada a safra da sardinha, mais de metade do pessoal nela empregado no Furadouro vai exercer a sua atividade na pesca do sável no Tejo e no Douro (Afurada), e outros recolhem à vila de Ovar, ficando deserto o Furadouro”.
As tragédias no mar do Furadouro fazem igualmente parte das memórias das suas gentes, e já a 05/11/1891 “foi ao fundo um barco da companha de S. Lourenço, morrendo nove homens”. No ano seguinte registou-se um incendio, que “destruiu as melhores fábricas de sardinha e alguns depósitos de sal”. Mais tarde a 27/04/1903 a Câmara Municipal de Ovar, “concedeu, gratuitamente à fábrica de conservas A Varina, uma área arenosa situada a sul da praia do Furadouro para construção duma sucursal”. Os incêndios foram também grandes tragédias que ao longo dos séculos XIX e XX se abateram sobre os tradicionais palheiros nesta praia, enquanto o mar deixava igualmente rastos de destruição, derrubando as habitações dos pescadores que foram ocupando terreno na praia, travando uma longa persistente luta pela sobrevivência, que só mesmo no século XXI acabam por assistir conformados ao fim da arte xávega.
A importância económica e social da pesca no Furadouro continuava bem presente nas décadas iniciais do século XX. Entre 1911 e 1928 são citadas companhas a trabalharem nesta costa, como a da Senhora da Piedade, Republica, Senhora da Graça, S. João Baptista, Santo António, Senhora dos Navegantes, Senhora do Rosário ou a companha Pátria, ocupando cerca de 900 pescadores. Homens do mar que a 9 de maio de 1918, segundo os relatos da época, “um grupo numeroso de pescadores do Furadouro veio a Ovar reclamar farinha, ou pão por preço mais baixo do que se estava pagando no mercado”, tempos difíceis que levaram a Câmara local a “pôr à venda açúcar, e recebeu alguns vagões de milho”.
O estado de decadência da arte xávega vem naturalmente de muito longe e nesta obra literária de história local, os registos não deixam dúvidas. Em 1939 “a Varina (fábrica de conservas) transferiu as instalações e a sede para a vila de Matosinhos, abandonando o decadente porto de pesca do Furadouro”.
Durante as décadas que se seguiram até ao desfecho inglório da partida do “Jovem”, o único barco que ali pescava. A atividade foi oscilando em cíclicas crises, que se foram arrastando de década em década. Em 1940 “trabalhavam na costa do Furadouro duas companhas” e 15 anos depois (1955), “a empresa de pesca S. Pedro começou a utilizar, por economia e falta de pessoal, um barco mais pequeno, de dois remos, com uma tripulação de 27 homens”, enquanto os barcos tradicionais nesta pesca com quatro remos, envolviam 45 homens na embarcação. Estavam então recenciados 146 pescadores. Um número que chegou a atingir os 324 pescadores em 1969, mas a instabilidade e fragilidade deste setor acabou ser o pão nosso de cada dia, e assim foi sobrevivendo, mais de forma simbólica, para turista ver. Ironicamente acabou quando se regista algum incremento de turismo.
Pesquisa: Datas da História de Ovar 922 – 2005, de Alberto Sousa Lamy, edição Câmara Municipal de Ovar, 2005
01mar19