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Mau sonho sonhado, má vida vivida

Bruno Ivo Ribeiro (*)

O sonho é mau, porque já nele não vemos verdade, e a vida é má, porque vivida erradamente. O sonho não é a vida, muito embora seja a vida um completo sonho que continuamente se sonha. Quer-se o bom sonho, porque se deseja a boa vida, matando-a desse modo.

Por baixo da terra, reina o indefinido, e acima de nós, há só mais terra.

Estamos como que divididos, apartados de nós e do mundo, apartados de nós e dos outros, apartados, enfim, dos outros e do mundo. vivemos em partes, e todas as partes de nós partidas, estão apartadas sem para nós tornarem a vir.

Estamos partidos porque quebrados por dentro, e vivemos apartados porque não nos saber juntar. A união só merece ser escrita, quando os corações se unem, e não os interesses, de modo que a verdade possa ser proferida pela boca de todos, e desse modo, não é de nenhum.

Amanhã a escrita morrerá, tal como o que ontem foi escrito, escrito está. Mas amanhã a escrita morrerá, e hoje sonha-se escrevendo-se, tal é o seu meio-termo e a sua tão perfeita indefinição.

Virginalmente, cai a tinta na página do caderno, e a caneta, gasta como o tempo, vai escrevendo o que o seu coração vai bombeando. O coração bombeia sim, mas é o cérebro que o pensa e sente. Todo o devaneio é neurótico, todo o pensamento é nervoso em si mesmo, e toda a morte, é só um pensamento expirado.

A vida, essa quero-a bem, e só eu o sei, o quão bem a quero. A vida apresenta-se-me tão inteira como eu estou partido. Olho-a, e ela sorri-me, tento abraçá-la e ela beija-me, tento desviar-me, e como um anjo divino, ela segue-me e dá-me a mão. A vida, a vida é tão bela quanto o sonho, mas o sonho não é a vida, muito embora seja a vida, toda ela, constitutivamente um sonho sonhado que nos chega aos sentidos, e que diz “agora lida comigo”, e nós aprendemos a não viver sem ela.

Um dia a água deixou de correr, partiu o seu fluxo como todos nós que ondeamos na cidade. Vistos de cima, somos todos gotas de rios, afluentes e riachos. Somos mares de gentes, mas somos todos gotas que se contam individualmente. Mas as gotas também se evaporam…

Sozinhos, apartados, nada somos, mas juntos, tudo podemos. Quero com isto dizer que se devem juntar todas as partes do ser que somos, e não as partes que nos querem obrigar a ser. Devemos ter a audácia de ser, a força de ser quem somos, a força de ir ser quem se é, de caminhar nas ruas e ser, simplesmente, sendo.

Deve-se viver inteiro, não se deve votar em partidos, nem se deve de viver apartado. Não devemos de estar apartados de nós mesmos, dos outros e do mundo. Devemos de viver coerentemente, inteiramente, mas não nos devemos fundir com os outros.

É preciso viver equilibrado acima da terra e debaixo da terra do céu. Somos este estágio intermédio em que não nos fundimos com a verdade, nem com a mentira. Somos puxados e puxamo-nos a nós mesmo. Não nos sabemos controlar, porque não nos conhecemos, e matamo-nos, culpando posteriormente os outros, que vivem, afinal, na mesma situação.

Rezamos, para quem? Sentimos, porquê? E pensamos, como?…

Rezamos para um deus que só queremos nas adversidades, sentimos as dores que achamos serem infligidas pelos outros, e pensamos nisto e em tudo, sem, de facto, pensarmos em nada em concreto.

Vivemos apartados, e julgamo-nos inteiros, e no entanto, debaixo do sol, reina a terra, e debaixo da terra reina um outro céu imenso, um indefinido ígneo, que arde afogado num mar de sonho e esperança. Debaixo da terra o paraíso, e acima das nuvens, o inferno que para nós construímos.

Acima das nossas cabeças não tem de ser o inferno, pode muito bem ser um outro paraíso, mas nós, que somos com a terra e que a ela voltaremos, alimentamo-nos dela, e pensamo-la com o coração.

Temos de nos juntar dentro em nós, temos de nos encontrar com a nossa raiz, muitas vezes segregada em nome de uma mentira que nos foi contada em criança, e que agora, vemos com a clara, dourada e luzidia luz da razão fulgurante, o quão enganados andávamos, o quão afastados estamos, e quão coesos nos podemos tornar.

Não nos devemos fundir para não perdermos esta diversidade natural que a todos cabe, e da qual o mundo precisa. Não nos devemos fundir, par anos não perdermos, mas devemos por isso de nos juntarmos connosco, para proferirmos o verbo da criação, verbo esse, que só é verbo, porque transformador, tal como toda a escrita e arte de criar.

O pensamento desvela-se, o sonho descobre-se, e a vida, tão bela como indefinida, não pode jamais ser escrita, porque se o for, anular-se-á…

(*) texto e foto

01jun19

 

 

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1 Comment

  1. Fernanda Miguel

    Texto muito bem escrito. Dou-lhe os meus parabéns!
    Não concordo com algumas coisas, mas só de ordem filosófica ou teológica, mas isso é insignificante porque é apenas o que eu penso e sinto. Eu sou das que acredito que tudo tem uma razão de existir, que tudo é energia e que não há céu nem inferno.

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