Ana Costa de Almeida
Lembrando as palavras atentas e, infelizmente, sempre actuais com que Bertolt Brecht termina um dos seus poemas, “(…) Agora estão-me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, Ninguém se importa comigo.”, continua a constatar-se que a memória da História, mesmo que relativamente recente, e das consequências e atrocidades reais despoletadas pelo que começaram por ser discursos aparentemente minoritários de ódio, não é marcante, como devia, e esse “esquecimento” pode potenciar novas barbaridades.
Considerada a natureza humana, nas características que lhe são intrínsecas, com fraquezas e defeitos, não se estranha, ainda que muito preocupe, aquele facto, materializado frequentemente em tantas considerações, comentários e discursos completamente avessos ao que são direitos, liberdades e garantias em que assenta um Estado de Direito Democrático, como o é, e deverá assegurar-se que continue a ser, Portugal.
A coberto e “no uso” do que sejam o direito e a liberdade de expressão, e, no que representa maior contradição, da própria proibição de discriminação em função das convicções políticas e ideológicas, também Portugal é hoje palco de manifestações públicas crescendas de ódio, preconceito e, pasme-se, de marginalização de outrem, primacialmente em função da raça, do território de origem, da religião, da orientação sexual e até da situação económica.
O princípio da igualdade, de que não se desprende o princípio da universalidade, consagrados, respectivamente, nos artigos 13º e 12º da Constituição da República Portuguesa servem, em manifesta e reprovável subversão, o propósito de afrontar esses exactos mesmos ditames constitucionais.
No preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adoptada e proclamada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948, e a que foi também beber inspiração a Constituição da República Portuguesa, aprovada e decretada em 2 de Abril de 1976, realça-se, além do mais, que “o desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do homem”.
Estando, na altura, ainda bem presentes os discursos de preconceito e de ódio pelo outro, e as consequentes atrocidades vividas durante a Segunda Guerra Mundial, determinou-se, no artigo 7.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que todos têm direito a igual protecção não só contra qualquer discriminação que viole a Declaração, como também “contra qualquer incitamento a tal discriminação”.
Por sua vez, na Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, adoptada em Roma a 4 de Novembro de 1950 e vigente na ordem jurídica portuguesa desde 9 de Novembro de 1978, estabelece-se, no respectivo artigo 17.º, que nenhuma das suas disposições, incluindo, pois, o direito elementar da igualdade e a proibição de discriminação, “se pode interpretar no sentido de implicar para um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de se dedicar a actividade ou praticar actos em ordem à destruição dos direitos ou liberdades reconhecidos na presente Convenção”.
Exactamente no mesmo sentido é o que se estipula no artigo 5.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, a respeito dos direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados neste tratado de idêntica relevância maior, adoptado e aberto a assinatura, ratificação e adesão por resolução da Assembleia-Geral das Nações Unidas de 16 de Dezembro de 1966, e entrado em vigor no ordenamento jurídico português em 15 de Setembro de 1978.
Também na própria Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia não deixou de se consagrar, no respectivo artigo 54.º, a proibição do que representaria e representa “abuso de direito”, prevenindo e reprimindo qualquer possibilidade de interpretação dos direitos nela consagrados, como o são tanto a liberdade de expressão, como a igualdade e a proibição de discriminação, no sentido de implicarem ou se alegar qualquer direito de exercer actividades ou praticar actos que, antes, visem a destruição ou restrições inadmissíveis desses direitos ou liberdades.
A proibição veemente da subversão e do abuso de direitos e liberdades com vista a destruir ou apenas restringir indevidamente os mesmos é clara e merece a maior atenção, sem que se admitam discursos, condutas e actos nesse sentido (também) em Portugal.
Pese embora a proibição de discriminação em função de convicções políticas e ideológicas, e o direito de constituir ou participar em associações (e partidos políticos), não são consentidas, pelo artigo 46º da nossa Constituição, “organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista”, tendo-se, assim, impedido o que representaria não só contradição flagrante com o que se acautela na Lei Fundamental e lhe esteve (e está) subjacente, como inadmissíveis concretizações do aludido “abuso de direito”.
Determina-se, ainda, no artigo 160º, n.º 1, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, que perdem o mandato os Deputados que “Sejam judicialmente condenados por crime de responsabilidade no exercício da sua função em tal pena ou por participação em organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista”.
Mesmo que haja quem entenda que a proibição constitucional de constituição e participação em organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista, direccionadas para a difusão e o próprio incitamento a ideias dessa índole, não legitima a “criação” de sequer qualquer delito de opinião, é inultrapassável o facto de que tais condutas, ainda por cima por quem exerça o cargo de Deputado, representam afronta directa e de gravidade maior à Constituição da República Portuguesa, ou seja, precisamente à mesma Lei Fundamental que prevê e legitima a existência e o funcionamento da Assembleia da República, num Estado de Direito Democrático.
No seio da sociedade portuguesa, crescem, assustadoramente e com justificada preocupação, manifestações públicas do que são violações directas, graves, daquilo que sustenta, a título de direitos, liberdades e garantias, uma salutar e pacífica (con)vivência. Os que compactuam com essas formas de discriminação de outrem e com discursos de ódio esquecem que poderão, ou quem lhe é querido, ser um dia alvos de comportamentos semelhantes e, se calhar, depois também ninguém se importará com isso … O passado e a História sempre deverão ser lição bem presente, sob pena de se incorrer nos mesmos erros, com consequências de difícil, senão impossível, reversão.
Obs: Por vontade da autora e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
Foto: pesquisa Google
01nov19