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O império que há em nós

António Pedro Dores

 

As eleições norte-americanas dizem respeito a toda a humanidade. Por um lado, os seus efeitos vão ser sentidos por todo o mundo. Por outro lado, a comunicação social dominante, aquela que ocupa o espaço público e a atenção da generalidade das pessoas, temporariamente, suspendeu a obsessão com o novo vírus por uma luta de galos. Ambos os assuntos são apresentados a destilar medo, medo de morte, medo de traição.

Sou dos que ficou aliviado pela vitória de Biden. Mas sei que essa vitória representa, tal como os comentadores mais favoráveis a Trump disseram, mais guerra. Republicanos e democratas divergem: os primeiros preferem (re)tomar a luta de classes, a guerra interna; os democratas preferem continuar a guerra entre estados (Schahill, 2015). Uns e outros contra os estrangeiros. Todos a destruir o que resta das promessas da globalização, como a paz e a livre circulação de pessoas.

Dizem os analistas que foi a política contra a pandemia que contrabalançou, para o lado dos democratas, os votos que também aumentaram para os republicanos. A excepcional mobilização dos eleitores revelou o medo de morte que os incomoda e divide. Temem a pandemia, a miséria do fecho da economia, o fascismo, as elites cruéis e indiferentes aos sofrimentos, nomeadamente dos que sofrem sem acesso a cuidados de saúde. Porém, a esperança que a democracia disponibilizou foi a alternativa entre fazer a guerra longe do território norte-americano, contra os estrangeiros, ou no próprio solo dos EUA, contra os imigrantes.

O resto do mundo assiste e adapta-se ao império. O império não é quem entra na sala oval. O império somos nós, quem aceita passivamente transformar os problemas reais, como o aquecimento global e os eventos extremos que o acompanham, incluindo novas doenças de que a actual pandemia pode ser – dizem os especialistas – apenas um primeiro evento já antecipado há anos, sem que os estados se tenham preocupado em prevenir as suas consequências.

Os estados, ocupados com a globalização poluidora, que ao mesmo tempo abandonam cada vez maior número de refugiados vítimas de guerra e de efeitos das mudanças climáticas, produzindo maiores desigualdades sociais, não se prepararam e continuam a recusar-se a preparar-se para prevenir as misérias ou as doenças ou a desertificação ou seja o que for que no futuro nos espera. A ciência, desde os anos 60, soube que o aquecimento global seria um problema grave.

Os estados e os seus aliados empresariais recusaram tomar isso em conta. Organizaram campanhas contra a ciência, ao abrigo da liberdade de expressão, banalizando a mentira política, confundida com a mentira publicitária. Organizaram uma sociedade consumista e democratizaram-na para os países emergentes. A mentira serviu para legitimar a nova política de guerra global, anunciada em 2003 nos Açores por George W. Bush, Blair e Aznar, tendo por valet o Durão Barroso, cujo sucesso na vida só se compara ao de Ronaldo. A mesma mentira que serviu para culpar os povos do Sul da Europa, alegadamente preguiçosos e abusadores de mulheres, pela falência do sistema financeiro global, em 2008.

Aqui chegados, voltando às eleições americanas, a opção foi entre enfrentar a urgência da pandemia (democratas) ou retomar a prioridade à economia (republicanos). A evidência de a economia que temos ser insustentável e de a pandemia ser apenas um evento extremo entre muitos outros em curso (por exemplo, a descarga para o oceano de enormes quantidades de água radioactiva do desastre de Fukuxima) não teve lugar nas discussões. Nem nos EUA nem no resto do mundo.

Estados que abandonam os idosos em lares que podem ter condições criminosas de acolhimento, para que as famílias possam trabalhar, esperando que não lhes caiba o mesmo destino, tornaram-se campeões da saúde pública e da defesa da vida desses idosos? Em países como os EUA que abandonam grande parte da população sem acesso a cuidados de saúde, o que significa organizar a prevenção da pandemia? O Obamacare continua por realizar e vamos ver se será possível avançar e com que resultados.

O problema da pandemia não foi causar muitas mortes. As mortes evitáveis acontecem por muitas partes do mundo, muitas vezes provocadas pelas acções dos estados mais poderosos. O problema da pandemia, para os estados, foi a ruptura dos serviços de saúde indispensáveis ao controlo da força de trabalho.

Walter Scheidel (2017) mostrou como as guerras, as revoluções e as pandemias são, historicamente, as únicas maneiras de inverter a tendência do aumento das desigualdades sociais. Informadas disto, as elites mundiais que investem fortemente em defesa e segurança para controlar as guerras (internas e externas) deram-se conta de terem investido insuficientemente para controlar as pandemias. Então, a começar na China, usaram a prontidão profissional dos profissionais de saúde – saudados pelas pessoas comuns – como se de um estado de guerra se tratasse. Porém, este exército não foi aumentado nem reformado para enfrentar a nova situação de sucessão de pandemias, de que a actual segunda vaga é apenas um prelúdio. Novas formas de controlo estão a ser imaginadas e testadas, como o crédito social chinês, para se poder continuar com os propósitos irracionais do império lançado pelos Portugueses nos Descobrimentos: explorar a Terra e os seus recursos, incluindo os recursos humanos.

Aqui estamos nós, recursos humanos, a conversar uns com os outros, ansiosos para que tudo volte ao normal. Ao normal da guerra dos democratas e ao normal da exploração do planeta, que é para isso que nos pagam os salários ou os subsídios, e para que nos impõem o recolher obrigatório.

 

Referências:

Schahill, J. (2015). Guerras Sujas. Marcador.

Scheidel, W. (2017). The Great Leveler, violence and the history of inequality from the Stone Age to the twenty-first century. Princeton University Press.

 

Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

 

Foto: pesquisa Web

 

01dez20

 

 

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1 Comment

  1. jose lopes

    Gostei…
    “Aqui estamos nós, recursos humanos, a conversar uns com os outros, ansiosos para que tudo volte ao normal. Ao normal da guerra dos democratas e ao normal da exploração do planeta, que é para isso que nos pagam os salários ou os subsídios, e para que nos impõem o recolher obrigatório”.

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