Carmen Navarro
Numa noite estrelada fria, gélida, de um céu azul liquido muito escuro, pela primeira vez vi o brilho das estrelas, era Natal , não sei se já era, as noites são todas iguais, caminhávamos arrastando os nossos passos no escorregadio da rua para ir comprar qualquer coisa que não sei o que foi, talvez o pinheiro, que se vendiam nas ruas, daquela noite só uma coisa me ficou na memória, o tremeluzir das estrelas, foi uma noite mágica que até hoje lembro, não sei, mas parece-me que nunca mais vi igual. Este foi o meu melhor presente de Natal que me ficou para toda a minha vida…
No Natal as noites são mais longas. Gosto dos enfeites de Natal, das luzinhas no pinheiro, lembra-me o tremeluzir das estrelas e gosto da serenidade do presépio.
A avó Júlia contava contos de Natal, não sei, mas creio que muitos eram inventados por ela e cantarolava as belas loas da tradição popular portuguesa e, tocava no piano melodias de Natal.
O meu encantamento era tal que o meu mundo era pequenino, vivia em paz e era feliz, mais nada existia.

Este Natal não vou falar dos que não têm Natal, nem casa, nem sonhos nem um pouquinho para fazerem um dia diferente dos outros, quando a vontade de alguns tudo podiam mudar. Sim fazem Ceias de Natal, este ano certamente nem isso vão ter. Sei que Instituições e Associações, distribuem o chamado Cabaz de Natal, que pode resolver momentaneamente, mas não resolve o problema e nem reabilitam a vida das pessoas.
As Câmaras Municipais gastam fortunas com enfeites de Natal por vezes exagerados, fogos de artificio e pelas ruas um pouco mais encostados a um canto deixam pessoas desabrigadas cada vez mais, sem um teto a dormirem na rua ao frio, à chuva e ao vento que lhes pôs a dignidade a voar.
Verbas de milhares, que davam para abrigar, proteger e devolver a dignidade de seres humanos que são iguais a todos nós que tivemos oportunidade de sermos protegidos. Nascemos e morremos num certo dia, o que muda é a forma como acontece, na prática é igual.
Vamos ser solidários principalmente quem ter poder para resolver este problema. E não se esqueçam que o que a mão direita faz a esquerda não necessita de saber.
Os nossos poetas também têm memórias de Natais passados e que neste cantinho de Poetas vamos lembrar:
José Carlos Pereira Ary dos Santos, poeta, declamador a quem a música portuguesa muito deve. Nasceu em 7 de dezembro de 1937, em Lisboa, faleceu na mesma cidade a 18 de janeiro de 1984.
O poeta do povo é reconhecido por todos e todos conhecem José Carlos Ary dos Santos, pois a sua obra permanece na memória de todos e, surpreendentemente, muitos dos seus poemas continuam atualizados.
Quando um Homem Quiser
Tu que dormes à noite na calçada do relento
numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
és meu irmão, amigo, és meu irmão
E tu que dormes só o pesadelo do ciúme
numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
e sofres o Natal da solidão sem um queixume
és meu irmão, amigo, és meu irmão
Natal é em Dezembro
mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
é quando um homem quiser
Natal é quando nasce
uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto
que há no ventre da mulher
Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
tu que inventas bonecas e comboios de luar
e mentes ao teu filho por não os poderes comprar
és meu irmão, amigo, és meu irmão
E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
és meu irmão, amigo, és meu irmão.
Ary dos Santos, in ‘As Palavras das Cantigas’
David Mourão-Ferreira. Escritor e Poeta, nasceu em Lisboa, a 24 de fevereiro de 1927 e faleceu, também na mesma cidade, em 16 de junho de 1996. Licenciou-se em Filologia Românica em Lisboa, foi professor catedrático, da cadeira de Teoria da Literatura. Entre muitas outras atividades ligadas às letras.
Ladainhas dos Póstumos Natais
Ladainha dos Póstumos Natais
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
David Mourão-Ferreira, in ‘Cancioneiro de Natal’
Eugénio de Andrade. Pseudónimo de José Fontinhas, Poeta, nasceu na Póvoa da Atalaia (Fundão) em 19 de janeiro de 1923 , estudou em Lisboa, em 1950 fixou residência no Porto, cidade em que veio a falecer em 13 de junho de 2005. Foi funcionário dos Serviços Medicos-Sociais. O Fundão tem uma biblioteca com o seu nome
Último Poema
É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os dióspiros ardendo na sombra.
Quem assim tem o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia.
Eugénio de Andrade, in ‘Rente ao Dizer’
Natália de Oliveira Correia. Poeta, Escritora e Deputada à Assembleia da Republica. Nasceu na Fajã de Baixo, S. Miguel, (Açores) em 13 de setembro de 1923. Estudou em Lisboa cidade em que faleceu em 16 de março de 1993. Ficou conhecida pela sua personalidade livre de convenções sociais, vigorosa e polémica que a sua escrita reflete.
Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,
menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.
Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.
O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.
Natália Correia, in ‘O Dilúvio e a Pomba’
Nada é novo na vida, há dois mil anos nasceu um Menino sem-abrigo no meio da noite fria e mais fria foi, ninguém deu abrigo para que nascesse agasalhado e perfumado.
A Noite de Natal vai ser diferente para todos nós, no entanto para um desabrigado vai ser igual a todas as noites do ano. Noite fria e húmida onde a solidão mais gela.
Quando o relógio bater a meia-noite, vou espreitar para ver se a Noite de Natal ainda é estrelada, fria, gélida de um céu azul liquido muito escuro,… Quero ver o meu presente de Natal do tempo da inocência, para acreditar que a felicidade ainda é possível…
Fotos: pesquisa Google
01dez20