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Os Poetas Pintam com Palavras

Carmen Navarro

 

Os pintores e os poetas sempre gozaram da mesma forma do poder de ousarem o que quisessem.

Horácio

 

A poesia e a pintura andaram sempre de mãos dadas.

É extremamente importante que as crianças e os jovens sejam estimulados, e educados esteticamente para interagir, reconhecerem, e compararem a beleza das coisas, abrirem-se ao mundo  dos sons, das cores, das formas, dos cheiros e da força bela da palavra.

Tudo o que vemos em nosso redor, o que sentimos, e o que a nossa imaginação cria pode ser transmitido em Arte. É na família que está o primeiro passo educativo, é onde ela realiza as suas primeiras aprendizagens, para relativizar tudo, esse é o momento ideal para esteticamente valorizar  o que vê. A educação estética ajuda a construir uma inquietação feliz.

Artistas das palavras.

Preenchem folhas em branco

com obras primas.

Retratam em palavras

os sentimentos da alma

e dos olhos.

Enxergam além dos mortais seres comuns,

tornando-se ‘imortais’.

 

Poesias são pinturas sem tintas.

Parodiando Voltaire que escreveu

que “a pintura é poesia sem palavras”.

Castro Alves

Todas as Artes misteriosamente se comunicam e todas comungam do mesmo; sensibilidade… Seja Poesia, pintura, escultura, música ou mesmo arquitetura… Os criadores de Arte não vivem numa redoma de vidro a sua sensibilidade está desperta sempre para tudo o que os rodeia, todos os movimentos são apreendidos e podem ser transformados em Arte.

A intertextualidade promove o dialogo da sensibilidade que pode ser expresso em qualquer linguagem estética. Seja num texto poético, como numa tela.

Vamos ver como um poeta e pintor pode usar o mesmo sentimento num processo de criação de suporte totalmente diferente.

Hoje abordamos dois portugueses extraordinário e que foram poetas e pintores.

Quando um artista faz uma obra de arte está a transformar o mundo…

José Sobral de Almada Negreiros, nasceu a 7 de abril de 1893, na Cidade da Trindade  em São Tomé e Príncipe.
Foi um artista multidisciplinar português, uma figura ímpar no panorama da primeira geração de modernistas portugueses do século XX. Dedicou-se a muitas formas de arte, fundamentalmente, às artes plásticas e à poesia.

Faleceu em Lisboa a 15 de julho de 1970

A Sombra Sou Eu

A minha sombra sou eu,

ela não me segue,

eu estou na minha sombra

e não vou em mim.

Sombra de mim que recebo luz,

sombra atrelada ao que eu nasci,

distância imutável de minha sombra a mim,

toco-me e não me atinjo,

só sei dó que seria

se de minha sombra chegasse a mim.

Passa-se tudo em seguir-me

e finjo que sou eu que sigo,

finjo que sou eu que vou

e que não me persigo.

Faço por confundir a minha sombra comigo:

estou sempre às portas da vida,

sempre lá, sempre às portas de mim!

Almada Negreiros

Mãe!

Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!

Traze tinta encarnada para escrever estas coisas!

Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!

 

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

 

Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!

Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.

 

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.

Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado.

Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei,

tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

 

Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!

Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa.

Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

 

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

 

Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!

Almada Negreiros

Os próprios poetas se caracterizam como pintores

A Varina

A Varina

Lá na Ribeira Nova

onde nasce Lisboa inteira

na manhã de cada dia

há uma varina

e se não fosse ela

ai não sei

não sei que seria de mim!

Por ela

fiz dois versos a todas as varinas:

E vós varinas que sabeis a sal

e trazeis o mar no vosso avental!

Acho parecidos estes versos

com as varinas de Portugal.

 

Uma vez falei-lhe

para ouvi-la

e vê-la

ao pé.

A voz saborosa

os olhos de variar

castanhos de variar

castanhos-escuros de variar

com reflexos de variar

desde o rosa

até ao verde

desde o verde

até ao mar.

 

Num reflexo refleti:

não dar aquele destino

ao meu destino aqui.

Almada Negreiros

Um quadro é muitas vezes considerado como poesia muda

Mário Cesariny de Vasconcelos, nasceu a 9 de agosto de 1923 em  Lisboa. Pintor e Poeta. Foi um dos artistas que assumiu plenamente o surrealismo não como escola mas sim com insurreição, tanto na Arte como na Vida. Uma característica peculiar da arte de Cesariny é que nela a pintura e a poesia foram sempre aliadas.

Faleceu em Lisboa a 26 de novembro de 2006

Em Todas as Ruas te Encontro

Em todas as ruas te encontro

em todas as ruas te perco

conheço tão bem o teu corpo

sonhei tanto a tua figura

que é de olhos fechados que eu ando

a limitar a tua altura

e bebo a água e sorvo o ar

que te atravessou a cintura

tanto tão perto tão real

que o meu corpo se transfigura

e toca o seu próprio elemento

num corpo que já não é seu

num rio que desapareceu

onde um braço teu me procura

 

Em todas as ruas te encontro

em todas as ruas te perco.

Mário Cesariny

O Navio de Espelhos

O navio de espelhos

não navega, cavalga

Seu mar é a floresta

que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha

sol e lua nos flancos

(Por isso o tempo gosta

de deitar-se com ele)

Os armadores não amam

a sua rota clara

(Vista do movimento

dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade

nenhum cais o abriga

(O seu porão traz nada

nada leva à partida)

Vozes e ar pesado

é tudo o que transporta

(E no mastro espelhado

uma espécie de porta)

Seus dez mil capitães

têm o mesmo rosto

(A mesma cinta escura

o mesmo grau e posto)

Quando um se revolta

há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca

reflectem os objectos)

E quando um deles ala

o corpo sobre os mastros

e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga

(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo

até ao fim do mundo

Mário Cesariny

Onan dos Outros!

Onan dos outros! Ó deus que dás confiança

Só a quem já confia!

E não à morrente ou garça mão que se ansa

Varonil e vazia.

 

O Virgem Negra, tal me descobriram

Cincoenta anos depois,

Em minha infusão estou. Tombam, deliram

Em vão quantos seguiram

 

Minha viagem ao nunca ser dois.

No seu andor de luto e de desgraça

O Virgem Negra passa

Maior que todos os sóis.

Mário Cesariny

 

Ler uma poesia, ou observar uma pintura é rececionar e compreender o que nos rodeia e ambas estão relacionadas com o que vemos, ou que guardamos na mente…

 

 

Fotos: pesquisa Web

 

01mar21

 

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