José Lopes
As consequências fundamentalistas das correntes negacionistas e populistas de extrema-direita, que já se faziam sentir em vários governos do mundo muito antes da pandemia, que, não só disseram ao que vinham, como deram origem a fenómenos inquietantes de limitação das liberdades e da democracia em alguns países dos vários continentes, em que têm sido ensaiadas e exercidas politicas fomentadoras de ódio, racismo e homofobia, representando significativos retrocessos, mesmo civilizacionais, sempre com os interesses do capital salvaguardados à custa do empobrecimento e da fragilidade dos direitos das classes trabalhadoras e dos povos.
Se alguns dos protagonistas do populismo e nacionalismo na Europa, como o primeiro-ministro húngaro, Víktor Orbán, que consolidou um regime autoritário com poderes extraordinários, governando por decreto sem controlo parlamentar. Transformaram numa cruzada extremista a crise dos refugiados que conseguiam escapar aos diferentes cenários de guerra e perseguição no Médio Oriente, em que o estado islâmico aterrorizava o mundo perante a benevolência geoestratégica das potências imperialistas, mais preocupadas com o domínio do petróleo, independentemente do pesadelo sobre os povos subjugados ao fundamentalismo islâmico. Negacionistas como Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil eram eleitos, mesmo ao som estridente de tambores anunciando retrocessos sociais, racismo e sexismo, ou limitações às liberdades e democracia, que Paul Krugman, Vencedor do Prémio Novel de Economia em 2008, viria a escrever na revista exame.com (23/04/2020), “que a América que nós conhecemos pode não sobreviver muito mais tempo. A pandemia vai acabar em algum momento; a economia vai se recuperar alguma hora. Já a democracia, uma vez perdida, talvez nunca mais volte. E nós estamos mais próximos de perder nossa democracia do que a maioria das pessoas imagina”.
Destes governantes populistas, promotores da liberalização no acesso às armas e negacionistas das mudanças climáticas, Trump cavalgou igualmente o tema da imigração e a destruição do Obamacare. Enquanto o fundamentalismo religioso vem assumindo preocupante influência no “negacionismo no poder”, como se lê na Folha de São Paulo (online), fevereiro 2020, “o fundamentalismo religioso tem inquietado o meio intelectual. Com razão, pois 75% dos entrevistados dizem que, quando a ciência discorda de sua religião, seguem a orientação religiosa. Essa tendência é influenciada pela importância crescente da religião na vida cotidiana de muitas pessoas. O pertencimento à comunidade religiosa gera confiança, fazendo com que pastores, padres ou irmãos de fé sejam mais ouvidos do que figuras públicas, políticos ou cientistas”.
Em ambos estes países, como se lê ainda na Folha de São Paulo, “é mais do que óbvio que a ascensão da extrema-direita tem relação direta com o negacionismo climático, (…). Não faltam exemplos de ações que corroboram esse diagnóstico. Durante a campanha, Bolsonaro prometeu tirar o Brasil do Acordo de Paris, a exemplo do que Trump fizera nos Estados Unidos, com base no temor tão antiquado quanto infundado de internacionalização da Amazônia”.
Mas acabaria por ser a pandemia de coronavírus a facilitar a prolongada erosão das liberdades e garantias em países com Estados de direito, em que o negacionismo fundamentalista sobre a evolução da covid-19 ao fim de um ano, resulta numa crise sanitária e social sem precedentes na história moderna, deixando um rasto de tragédias que se abatem com particular violência nestes países que deixaram os seus cidadãos à mercê do sofrimento físico, social e psicológico, e da morte ou do empobrecimento. Consequências das opções negacionistas, que, voltando a recorrer a Paul Krugman na revista Exame.com (22/04/2020), resumia a visão do governo Trump e da imprensa americana de direita sobre o coronavírus, “(…) tentar fazer qualquer coisa a respeito do vírus poderia arrebentar a economia”, ao mesmo tempo que, “os epidemiologistas que projetam a propagação futura do vírus têm sofrido ataques constantes, acusados de fazerem parte de um complô do estado subterrâneo contra o presidente Trump, ou talvez só contra o livre mercado”, lembrava o economista, revivendo os episódios parecidos “com a linha da direita no quesito mudanças climáticas”, em que Trump, a exemplo do vírus covid-19, tuitou em 2012, que, “o conceito de aquecimento global foi criado pelos chineses para tornar a produção americana não-competitiva”.
Nesta linha de argumentos, ficaram “epidemiologistas surpresos de ver seus melhores esforços científicos denunciados como uma fraude com motivações políticas deviam ter imaginado que isso aconteceria. Afinal, aconteceu exatamente a mesma coisa com os cientistas do clima, que há décadas têm lidado com assédios constantes”, afirma o Nobel de Economia.
Quando os números totais da covid-19 a nível mundial, que se precipitam para atingirem 124 milhões de casos confirmados, aproximando-se os óbitos dos 3 milhões, registando-se na Europa 30 milhões de casos ao mesmo tempo que a OMS alertava para variantes mais contagiosas. Ou com o Reino Unido, primeiro país europeu a passar de 100 mil mortes, e com os 4 milhões de casos em progressão, assim como o número de óbitos a chegarem aos 130 mil.
O Brasil é analisado como estando a correr atrás da tragédia cada vez mais mortal entre os jovens, com quase 12 milhões de casos e rapidamente a chegar aos 300 mil óbitos, perante a intolerância e arrogância bolsonarista assente no negacionismo. Enquanto o derrotado republicano Trump nos USA, ainda resistiu a sair de cena, com apelo à ocupação do Capitólio, seguida fanaticamente pelos seus apoiantes transfigurados pelo ódio, que deram o surrealista espetáculo ao mundo de uma potência imperialista que facilitou um tal ataque de terrorismo interno, que ficou quase legitimado pela benevolência face ao crime instigado por um presidente que não aceitou pacificamente os resultados eleitorais em democracia, escapando à justiça americana. Ao mesmo tempo que deixa um país dramaticamente atingido pela pandemia covid-19, com quase 30 mil casos e mais de meio milhão de mortes.
Estes são alguns dos perigos da “ignorância com poder” que a pandemia acabou por revelar. Mas como de forma tão clarividente responde em entrevista à revista Expresso (12/03/2021), David Marçal, comunicador de ciência, doutorado em bioquímica, neste tempo do negacionismo, o pior inimigo da ciência, “é a ignorância com poder. A pandemia revelou o perigo de ter ignorantes no poder, como Donald Trump, alguém que é contra a racionalidade e contra os factos, ou Bolsonaros, que confundiu a esfera do conhecimento científico com a decisão politica. (…)”, clarificando ainda que, “(…) o negacionismo é não acreditar numa coisa mesmo que existam provas. Não se coloca em oposição à ciência, mas falsifica-a, procurando uma ‘ciência nicho’, alternativa. Só que nós não vivemos em realidades alternativas, não temos doenças alternativas nem pessoas com vidas alternativas: temos pessoas mortas. (…)”.
Mas para este cientista, “o que mais impressiona é a negação da existência e da gravidade da doença, uma negação sistemática que começa por considera-la uma ‘gripezinha’, que dúvida das máscaras ou dos testes de PCR, ou que diz que a doença tem uma letalidade baixa… Isto é o mais chocante: a negação militante da realidade por grupos que dizem ser ‘pela verdade’. Toda essa tribo de negacionistas da covid-19 que se desdobra em argumentos mirabolantes à medida que se enterra em becos sem saída”. São algumas das declarações do cientista David Marçal, na entrevista de Luciana Leiderfard, em que sintetiza que, “a ciência não é dos cientistas. É de todos, para todos”.
Foto: Pesquisa Google
01abr21