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O Cante Alentejano

Carmen Navarro

 

De onde veio esta bela forma de cantar que dá pelo nome de “CANTE”?…

Existem diversos estudos, que encontram sempre uma outra origem.

Aqui vou emitir aquela que a mim, e que a alguns estudiosos na matéria nos parece a mais plausível, mas mesmo que assim não seja, uma coisa é certa, O Cante Alentejano é muito belo…

Esta forma de cantar originalmente é do Baixo Alentejo.

No século XI, o que hoje é o Baixo Alentejo, ainda era território do Al Andaluz. O último Rei que governou a Taifa de Sevilha, nasceu em Beja em 1040 e faleceu em Marrocos 1095, Al-Mu’ Tamid, o Rei Poeta, ainda hoje é recordado na literatura árabe. (um jovem grupo musical de hoje, “ Há Lobos Sem Ser Na Serra” foi beber à estrutura do “Cante” a forma e canta  Al Mu’Tamid).  Este não é o poema deste poeta que melhor ilustra o que vamos dizer, mas é o que o Grupo canta.

 

Afã

Eu só quero que me fales

De cantigas e de vinho;

Deixa lá e não te rales,

Deus perdoa o descaminho!

 

Deixa essa gente vã

Com conversas e intrigas.

Elas não interessam nada

Pois o meu maior afã

É beber minha golada

De vinho na tarde vã,

Ao som de belas cantigas.

 

Al Mu’Tamid

Histórico-culturalmente, recebemos o legado da presença árabe que é mais visível no sul do país pelo facto de aí terem permanecido até mais tarde.

Na expressão vocal do Cante encontram-se semelhanças com o cantar mourisco.

No Califado em que a península se organizou. Eram permitidas todas as religiões, como práticas culturais, tais como a música a poesia a arquitetura e outras formas de arte.

A poesia árabe-andaluza medieval é bem estruturada, com significados profundos, onde se refere à mulher com delicadeza, canta o amor, a saudade, a tristeza como na poesia alentejana. Outro paralelo é referir-se frequentemente às flores, à lua, à natureza e isto são elementos que encontramos não só na poesia, nos sentimentos, como na cultura das gentes alentejanas.

A poesia e música do cante deverão, certamente, também ter bebido da prática trovadoresca, corrente na altura na península.

Outros estudos apontam para os Conventos que no século XV proliferaram no Alentejo, a forma polifónica dos cânticos religiosos, possivelmente também contribuíram.

Os frades do Convento da Serra de Ossa foram enviados para Serpa onde fundaram o Convento dos Paulistas, e Escolas de Cante Popular. o contacto com  eles é também de considerar, devido ao uso  dos Cânticos Gregorianos, pois a  estrutura do Cante denota  conhecimentos vocais, têm principio meio e fim.

Nesta época a polifonia ocupava o primeiro lugar na música vocal, uma polifonia sem instrumentos.

Uma parte da origem do Cante deve estar no Canto Gregoriano, que por sua vez tem por base, entre outras práticas contemporâneas, o Canto Moçárabe.

“À noite, pelas campinas,
Anda o Sol atrás da Lua,
Assim anda a minha sina,
Meu amor, atrás da tua!
Que inveja, tens tu das rosas,
Se és linda como elas são?
A rainha das flores
Tratada por tuas mãos,
Pelas tuas mãos mimosas,
Se és linda, como elas são,

Que inveja tens tu das rosas?”

Tradicional

Creio que as gentes do Baixo Alentejo foram beber um bocadinho nestas fontes.

Todas estas influencias estão no Cante como o conhecemos, um povo sofredor em função do trabalho, inspirou-se nestes valores, burilou  todo este conhecimento, criou, e executou-o passando a ser o instrumento do mesmo. E assim nasce o Cante Alentejano, que exterioriza os valores mais profundos da alma e da cultura deste povo, chamando a atenção para os problemas da desigualdade social no Alentejo.

O Cante é uma forma de cantar coletiva, que dava uma força maior, um ânimo aos camponeses que cadenciadamente, caminhavam longas distâncias juntos, homens, mulheres e crianças, até chegarem aos mares de searas, onde debaixo de um sol ardente, tinham que ceifar o trigo num trabalho esforçado que quando a fraqueza chegava necessitava do ânimo que o Cante dava.

Depois prolongou-se por caminhos fora, e informalmente entrou nas vilas, nas tabernas e nos cantares ao Menino Jesus no Natal.

 

Ó Meu Menino (Pias)

Estribilho/Responsório:  

Ponde em nós os Vossos olhos,

Misericórdia, amor!

Coplas/Versos: 

Ó meu Menino,

Meu doce Jesus,

Ó meu Redentor,

Salvai-me, Senhor!

 

Pobre em Belém,

Sorrindo na dor,

Quem tudo sustém,

Do mundo Senhor.

 

Senhor da Vida,

Que pobre que estais,

Na gruta despida,

Por entre animais.

 

O Cante Alentejano é uma polifonia em terceiras paralelas. Estas vozes distintas conferem-lhe uma sonoridade única.

A partir dos anos 30 do século XX, sob o regime de Salazar, formalmente, constituem-se dentro das vilas os primeiros Grupos Corais com alguma consistência e disciplina. Dentro das políticas do fascismo português e da intensa propaganda do regime o Cante é instrumentalizado e até a forma cultural. O regime impõem logo a ideia de que o Cante é da essência do homem e que as mulheres “não cantam” retirando assim, mais uma vez a visibilidade à mulher. Nas casas o Cante sempre foi cantado por todos os membros da família e o interessante é que as mulheres escolheram Modas mais suaves para delas fazerem Cante para embalar os filhos.

As mulheres estiveram na génese do cante, lado a lado com os homens.

Nos bailes todos cantavam, faziam versos à namorada ela fazia a ele, e voltavam à Moda que era a letra em que foi feita.

No Cante, geralmente cantado por grupos de homens, com vozes divididas em três naipes. O Ponto, o Alto e as vozes fundamentais, são elas que cantam a verdadeira linha melódica.

O Ponto inicia a Moda cantando normalmente a primeira estrofe, (ou cantiga) evidenciando toda a sua habilidade técnica, variando os contornos melódicos; seguindo-se o Alto que vai sobrepor-se e canta o primeiro verso da segunda estrofe, respeitando a estrutura melódica, cantando à terceira ou à quinta superior, e indica a altura em que as vozes fundamentais, que constituem o Coro entram, (o interessante é que o Alto executa alguns devaneios e várias improvisações vocais sobre o tema, de forma a ornamenta-lo). O Alto é uma voz de embelezamento virtuosístico que tem origem mourisca.

Cada solista atribui o seu cunho pessoal à sonoridade do Grupo

É difícil a sua transcrição em pauta devido a estes ornamentos, cada silaba das palavras pode corresponder a muitas notas de música.

“Atrás da Serra já nasce o Sol,

Já nasce o Sol já faz calor,

Ai quem me dera,

Agora, agora,

nesta santa hora ver o meu amor”

Tradicional

O Cante é composto por “Modas”, (é o nome que se dá as canções do Alentejo) elas podem ter dois sistemas musicais completamente diferentes. O sistema Modal e o sistema tonal. O sistema Modal vem da forma de cantar na Idade Média, o sistema Tonal, foi desenvolvido no Renascimento, século XVI .

A mesma música varia de terra para terra. Por vezes o mesmo nome da canção, noutra terra pode ter letra diferente. Uma das riquezas do Cante Alentejano está nesta diversidade.  Esta é uma das características da tradição oral.

As Modas do Cante Alentejano podem ser Modas lentas, coreográficas ou religiosas.

Na sua generalidade cantam a vida, o amor, a saudade, traduzem a alma do povo alentejano, expressam a sua identidade mas não reivindicavam melhor sorte. Algumas houve fora da temática habitual, foram logo proibidas e quem delas se lembrou foi duramente castigado. Nesse tempo mesmo amarfanhados, não se podia gritar por pão e muito menos por liberdade.

Só depois do 25 de abril de 74 as Modas foram politizadas.

Mas, depressa os Grupos retomaram o cancioneiro popular, e as temáticas antigas.

Depois de tudo isto, creio que o Cante nasceu da necessidade dos trabalhadores durante séculos “serem uns sem terra” devido aos latifundiários que tudo ocuparam, e que os fez inventarem um bálsamo para as suas dores tamanhas, um sofrimento infligido permanentemente, o Cante era o grito que  aliviava, um suspiro que tornava menos amarga a dureza de vida, em que a liberdade não existia e epicamente continuavam a trabalhar, sofrer, chorar e morrer…

A 27 de Novembro de 2014, durante a reunião do Comité em Paris, a UNESCO considerou o Cante Alentejano como Património Cultural Imaterial da Humanidade

 

 

Fotos: pesquisa Web

 

 

01mai21

 

 

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