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Barco “Sra. da Graça” a apodrecer no Furadouro é a imagem do abandono (há décadas!) da arte xávega

Em plena época balnear, com a praia do Furadouro a atrair as habituais multidões de veraneantes e turistas. A desoladora imagem do barco Sra. da Graça a apodrecer numa rotunda, depois da última intervenção na sua recuperação e inauguração como elemento escultório em 25/07/2016, volta, a repetir-se duas décadas depois, como a imagem do abandono a que continua votada a pesca costeira da arte xávega.

 

José Lopes

(texto e fotos)

 

Mesmo sem as adequadas técnicas de isolamento do barco de madeira, que garantisse uma mais prolongada durabilidade num espaço público, sujeito a todo o tipo de intemperes. Este elemento escultório, fez parte de uma geração de três embarcações matriculadas com o mesmo nome de batismo Sra. da Graça na praia do Furadouro, abatido no final dos anos noventa para fins museológicos, doado à Câmara Municipal de Ovar em 05/02/1998, depois de ter representado a pesca tradicional da arte xávega na EXPO`98, acaba mais uma vez deixado num avançado estado de degradação.

O característico barco da arte xávega, que representa um extraordinário património social, cultural e humano na praia do Furadouro, ainda que adaptado na sua dimensão à evolução dos tempos que deixaram para trás imponentes embarcações que dependiam da força dos pescadores na luta com o mar, enquanto em terra podiam recorrer a juntas de bois para puxar as redes e os barcos, não merecia acabar desta forma.

Apesar de todas as adversidades a que veio resistindo, a companha Sra. da Graça, foi uma das últimas referencias da memória coletiva desta comunidade piscatória no concelho de Ovar, que ali no Furadouro, era suposto ser dignamente homenageada através da emblemática embarcação, onde estão gravadas palavras, em que se lê, «Para mim, aquilo era um mundo maior que o mundo das cidades, com aqueles homens ruivos, roucos, gigantescos, que pegavam naqueles rolos de madeira e naqueles remos pesadíssimos como se nada fosse… gritando juras, insultos, numa cantilena sem fim. (…) Eles, os do mar, eram os gigantes, nós, a gente do interior, os anões. (Rocha, Paulo (1991) “Mudar de Vida, 25 anos depois”, João Semana, 15 de abril). Memórias do realizador do filme “Mudar de Vida”, Paulo Rocha. Uma longa-metragem rodada em 1966, que teve como cenário natural o bairro dos pescadores e a faina da pesca com a participação dos atores, Geraldo D´el Rey, Isabel Ruth, Maria Barroso e João Guedes.

A história do triste destino deste barco Sra. da Graça em avançado estado de decomposição, repete-se com diferentes executivos municipais, em épocas que medeiam duas décadas, exatamente na mesma rotunda, no norte do Furadouro, perante o olhar incrédulo de quem ali passa e vive nesta praia, ou de quem procura referencias da tradicional arte de pesca costeira, agora reduzida ao barco “O Jovem”, com a atividade piscatória a funcionar de forma precária e cíclicas longas paragens em terra sem perspetivas para este setor económico ou para a vertente social e cultural, que representa a arte xávega e suas típicas embarcações.

Este abandono de barcos recheados de simbolismo que vão sendo deixados a apodrecer entre as dunas ou ironicamente numa rotunda. São imagens deprimentes que se repetem, como já se escreveu no jornal Etc e Tal (01/08/2015) com o título “Furadouro: Barcos típicos da arte xávega com triste fim”, referindo, que “o último (terceiro) barco da geração Sra. da Graça encontra-se igualmente em desagregação, enterrado nas dunas, podendo aí acabar a história de um nome de embarcações que marcaram como postal turístico da praia do Furadouro.

” Imagens de desalento para uma comunidade que ao longo de séculos povoou e fez da relação com o mar a sua vida, para sobreviver e consolidar-se nesta terra do litoral vareiro, como palco natural de grande azáfama na indústria da pesca, afirmando-se como importante entreposto, nomeadamente nos séculos XVIII e IXX e primeiras décadas do século, em que se registaram dezenas de companhas e milhares de pescadores em sucessivas gerações, que povoaram igualmente outros pontos do litoral português.

Nas últimas décadas, destacaram-se entre alguns dos proprietários de barcos a operarem no Furadouro, a resiliência do “velho” mestre pescador e concessionário, António Maganinho, que orgulhosamente manteve a tradição da pesca de arrasto costeiro, até há primeira década do século XXI com o seu terceiro barco matriculado Sra. da Graça, cujos destroços ficaram enterrados nas dunas.

Ainda haverá destinos diferentes para a geração de barcos Sra. da Graça?

Perante o mais recente cenário de um barco Sra. da Graça como elemento escultório em avançado estado de degradação, numa rotunda no Furadouro, revisitamos memórias em alguns dos textos publicados em vários jornais, assinados pelo mesmo autor deste trabalho, que durante as últimas décadas acompanhou a arte xávega no Furadouro e destacou “A resistência de «Maganinho»” (Diário de Aveiro, 02/09/2001), em que entrevistou António Maganinho, na altura com 70 anos e uma força da natureza lado a lado com os pescadores da sua companha. “Percorre as areias da praia numa espécie de «cavalos de ferro» (tratores), que vieram substituir as juntas de bois, ou ata redes ao lado de outros velhos mestres”.

Em “Destinos diferentes para o Sra. da Graça” (Jornal de Ovar, 09/07/1999), eram feitas referências aos três barcos com o mesmo nome por diferentes gerações, como os dois primeiros que, “acabaram por ser abatidos para fim museológicos, no entanto com destinos bem diferentes”. Relatando que o 2.ª geração, “apesar de só ter dois anos de mar, acabou por alcançar um lugar no Museu de Ílhavo. Depois de uma última viagem, bastante simbólica, pelas águas do Atlântico, levando a bordo oficiais náuticos e os “Amigos do Museu de Ílhavo”, a quem, António Maganinho entregou o pesado e robusto barco, que navegou até ao Clube de Vela da Costa Nova e ali aguardará, até ser transferido para o Museu”.

Enquanto sobre o barco 1.ª geração, com catorze anos de mar, ainda que tenha tido “o mérito de representar a pesca tradicional da arte xávega da costa vareira, na Expo`98”. Posteriormente doada à Câmara Municipal de Ovar igualmente para fins museológicos em 1998, “está colocada no norte do Furadouro, num aparente abandono e visível destruição no seu interior, com o fundo a apodrecer, apresentando já buracos no casco. Estado pouco dignificante, para uma embarcação que representou Ovar simultaneamente na exposição dos Oceanos na Expo`98 ao lado de outras representativas embarcações e velhos lobos do mar (…)”.

Sobre o último barco que acabou a atividade em terra até apodrecer, este texto no Jornal de Ovar, referia que, “A terceira geração do Sra. da Graça, já há dias se fez com sucesso ao mar. Tratasse de uma nova embarcação ligeiramente mais larga, com o papo ou o bojo do barco menos aguçado para não se enterrar tanto no mar. E assim, enquanto houver pescadores e homens sempre prontos para desafiarem os perigos do mar, muitas vezes traiçoeiro, para dele arrancarem o sustento para os filhos, a família Maganinho da Praia do Furadouro, também cumprirá a tradição mantendo a companha de pesca”. Texto publicado igualmente na “Página do Leitor” do Jornal de Noticias (16/07/1999).

Tal como “um fim inglório” deste mesmo barco que ficou ligado à Expo´98, que em 2021 salta à vista em ruinas. Com este título no jornal de Ovar (30/08/2001), escrevíamos, “(…) sem que as promessas de recuperação feitas pelo vereador Augusto Rodrigues em nome da Câmara Municipal de Ovar ao Diário de Aveiro (10/08/99), ponham fim ao estado de abandono a que está votado este exemplar do património marítimo da comunidade piscatória do Furadouro. Disse então na altura ao D.A., o vereador, que «a embarcação apenas aguarda pela conclusão da obra de reconversão urbanística do Norte do Furadouro, onde ocupará o lugar de destaque que merece» (…)”.

Abandono da embarcação que exigiu obra de recuperação das madeiras podres, para, quando já não se acreditava na sua utilização como elemento escultório, acabar por merecer o prometido “papel principal”, que durante duas décadas, acabou por ser afinal, um papel muito secundário, com sucessivas fases de abandono e degradação, como voltamos a registar e a confirmar ao revisitar estas memórias de arquivo do autor deste trabalho.

 

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