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Ciência e magia

António Pedro Dores

 

 

Há uma velha tradição imperial de apresentar quem manda como criador do (seu) mundo. Para o efeito, os representantes do poder impõem a presença imperial e cerimonial em lugar de destaque nas manifestações populares, escrevendo a sua história em louvor do império e evitando referir as tradições, desqualificando-as, mas permitindo a sua vigência na condição de serem discretas.

Do mesmo modo, a ciência emergiu da magia, desqualificando-a, mas admitindo a sua existência na condição de ser discreta. Como aconteceu com Newton, o alquimista apresentado como o primeiro cientista.

Mais inspirado que outros alquimistas, Newton atreveu-se a imaginar a existência de “forças” que eram efectivas, apesar dos corpos não se tocarem entre si: a gravitação universal. Isso foi uma inovação para a época, mais materialista do que hoje consta. A maçã que lhe terá caído na cabeça fora atraída pela Terra, pensou à revelia do que era costume pensar. Sem a Terra a colher, como faria uma pessoa com a mão, a verdade é que a maçã caiu ao chão, como caem todas que não são colhidas.

Esse mistério de saber a razão pela qual a fruta cai das árvores foi resolvido matematicamente. Deus jogaria aos dados e, portanto, o universo seria como uma máquina de relógio. Uma vez descoberta a lei da gravitação universal, qualquer pessoa poderia compreender grande parte dos mistérios do mundo, desde o céu até à Terra, o jogo astronómico e a queda dos graves, pessoas e frutas. Bastaria pôr-se na posição de um grande relojoeiro.

Desde então, a humanidade divide-se entre os que acham que Deus faz o que quer, quando joga aos dados e de outros modos. E há os que acham que Deus está sujeito à ciência: como um cidadão disciplinado: limita-se a jogar aos dados. Embora, quando está mal disposto, provoque alterações climáticas, falências dos bancos demasiado grandes para falir, o retorno dos adoradores de Hitler, desigualdades sociais, epidemias mágicas, guerras, fomes, incêndios continentais, etc.

O mundo moderno não é um caos. Pelo menos assim pensam (ainda?) os cidadãos modernos. O caos é, ao invés, o principal inimigo da modernidade. Caos que insiste em surgir do nada, da natureza, por períodos limitados. O mundo moderno, segundo alguns cientistas que jogam aos dados, é normal. Isto é, respeita a regra matemática na maior parte dos casos, na maior parte do tempo. Para as raras excepções em que as normas não são respeitadas, e nos tempos escassos em que a norma é intencionalmente violada, em vez de se rever a regra matemática (para que passe a prever aquilo que não se previu anteriormente, o que dá muito trabalho a pensar) os moralistas preferem procurar culpados e manter as regras que não funcionam.

Em vez de terem o trabalho de pensar, os moralistas preferem fazer a guerra (aos vírus ou aos inimigos, reais ou inventados) com vista a erradicar as alegadas causas ou causadores das violações das regras que deixaram de oferecer cobertura àquilo que ocorre.

Eis um dos principais problemas dos cientistas: encantados com o que aprenderam e sabem aplicar, em situações de normalidade, quando tais aplicações deixam de funcionar, em vez de se perguntarem porque é que deixou de funcionar, ora esperam que a coisa passe, como se faz com os computadores ao reiniciá-los, ora, se não passa rapidamente, chamam a polícia e denunciam os culpados da perturbação da sua rotina, os inimigos da ciência.

Da mesma maneira que houve bruxas e bruxos que se passaram para a religião, e alquimistas que se passaram para a ciência, a magia, qual quinta coluna, jamais deixou de acompanhar a ciência e os cientistas. Em Roma, sê romano, pensam os mágicos disfarçados de cientistas. Pagos, como quaisquer profissionais, os cientistas podem papaguear a ciência que lhes ensinaram, mesmo se nunca a compreenderam. Como os velhos navegadores, orientam-se pelos ventos e pelos astros e procuram servir quem lhes paga e os prestigia, os seus financiadores e os avaliadores.

Nunca houve tantos cientistas e nunca houve tantos profissionais disciplinados por cientistas a imitar o Deus que joga aos dados, enquanto se mantém a jogar aos dados. Então, para mostrar a sua magia e agradar a quem pode e manda, em nome dos cientistas, a ciência encena enxurradas de dados matemáticos atirados às caras de todos e cada um. Pelo menos é disso que gostam os jornalistas. Dados que são interpretados por cientistas que dizem saber exactamente qual seja o significado desses dados, embora sem acordo entre si, pois cada um imagina o universo de formas distintas. Cientistas que, evidentemente, aproveitam a atenção mediática para se posicionarem melhor na fotografia e empurram os seus colegas adversários para a posições secundárias e silenciosas.

Então, pergunto ao leitor, porque é que as discussões sobre como funciona o universo (por exemplo, se a Terra é viva ou se podemos sangrá-la sem sofrer consequências; se os vírus são parte da evolução natural da vida ou são pragas lançadas de tempos a tempos para testar a virilidade moral dos cidadãos no respeito pelas regras impostas pela ciência oficial, mesmo quando são impostas à revelia das regras previamente estabelecidas), porque é que tais discussões científicas e constitucionais foram suspensas em nome da emergência pandémica? Porque é que o mesmo não acontece com a emergência climática?

Na era da ciência, caro leitor, quem se interessa pela ciência? Quem se interessa por participar na discussão sobre como funciona o universo? Quem se interessa por discutir a moral? Quem se interessa por saber como são feitas as decisões, para uns políticas e para outros científicas, sobre se a pandemia ainda está em curso ou está a acabar?

Como diria o poeta:

“Ora que porra! Deixa lá correr uma fila ao menos!

Malta pá, é assim mesmo, cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, né?

Preocupações, crises políticas, pá! a culpa

é dos partidos pá! esta merda dos partidos é que divide a malta, pá!”

(em José Mário Branco, FMI, 1982)

O cientista Newton, esse, tinha, com certeza, uma receita mágica para a pandemia: a ingestão de vómito do sapo. Tal receita, simbolicamente significativa, produziria o vómito do doente que assim se misturaria com o do sapo algures entre o doente e o meio ambiente, e o livraria da doença que o prendia ao leito: a crédula ignorância adoradora da autoridade do autoritarismo salvífico. Segundo evidência trazida pelo médico António Ferreira, tal como há 350 anos, a ciência continua afastada das orientações políticas para cuidar das pandemias.

 

Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

 

 

Foto: pesquisa Web

 

01set21

 

 

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