Aconteceu no Porto. Mas podia ocorrer em qualquer outro ponto do país. Os dois ingredientes do caso Selminho estão presentes em todo o território nacional.
Primeiro ingrediente: os ganhos fantásticos gerados pela alteração do uso dos solos. Este ponto tem sido o principal motor do crescimento do tecido urbano. As áreas previstas para edificação no conjunto dos PDM admitem a construção para 30 milhões de habitantes. E nos últimos 20 anos, de acordo com os últimos dados da DG do Território, os territórios artificializados – tecido urbano contínuo e descontínuo – atingiram 465.000 hectares, à custa da diminuição de áreas de agricultura (52.000 ha) e de floresta (41.000 ha).
E as mais-valias urbanísticas, que no nosso país ainda são de apropriação privada, levam proprietários de terrenos sem qualquer vocação edificatória (como os situados em linhas de água, em declives, em escarpas ou em reserva agrícola ou ecológica) a tudo tentar para obter capacidade construtiva. Mesmo quando se trata de imobiliárias que, pela sua especialização técnica, não podem desconhecer as restrições à construção por força de regulamentos como um PDM, há uma espécie de vale-tudo para alterar a cor verde, atribuída a um terreno por uma carta de qualificação do solo, para um tom laranja ou semelhante, que permitirá a construção.
E se à ganância imobiliária se juntar um segundo ingrediente, a subserviência de tantos autarcas perante o negócio imobiliário, a sua fraqueza na defesa das áreas naturais e do património municipal, estão então criadas as condições para negócios indecentes como é o caso Selminho.
Vamos aos factos. Invocando ser proprietária dum terreno com 2.260 m2 situado na escarpa da Calçada da Arrábida, que um tribunal confirmou posteriormente ser, na maior parte, terreno municipal e não privado, a Imobiliária Selminho insistiu, durante mais de 15 anos, em construir um edifício com 12 habitações T4 e 37 lugares de estacionamento numa parcela de terreno classificada, e bem, pelo PDM do Porto, como área verde de enquadramento de espaço-canal e escarpa, e por isso interdita à construção.
Não aceitando a restrição imposta naquele instrumento de gestão territorial aprovado pela assembleia municipal em 2 de junho de 2005, a imobiliária atuou em dois cenários, sempre com o objetivo de eliminar a proibição de construir naquele terreno. Intervém junto de autarcas.
Nos recursos apresentados pela Selminho no Tribunal da Relação do Porto e no Supremo Tribunal de Justiça da sentença condenatória do Juízo Cível do Porto é alegado que “… a Selminho realizou reuniões com vereadores municipais… para discussão da qualificação do solo do terreno dois no Plano Diretor Municipal, para efeitos de edificação”. A Selminho também avançou com ações na justiça administrativa: uma em 2005, julgada improcedente, depois outra em 2010. Os serviços municipais de urbanismo tiveram em todos os processos uma atuação em defesa do interesse publico, que deve ser realçada, ao reiterar a interdição de construção que afetava aquele terreno junto à ponte da Arrábida.
Diferente, para muito pior, foi a atuação de eleitos autárquicos com maior responsabilidade. Em vez de fazerem frente ao assalto imobiliário a terrenos municipais, em vez de defenderem o património da cidade, a Câmara então dirigida por Rui Rio decidiu, escassos dias após a entrada da segunda ação administrativa da Selminho e antes até de esgotado o prazo de contestação, transmitir ao tribunal a intenção de fazer um “acordo” com a imobilária. E em janeiro de 2014, já com Rui Moreira a presidente da Câmara, foi assumido em tribunal administrativo, em nome do município do Porto, o compromisso de alterar o PDM na revisão de 2016 para atribuir capacidade construtiva a um terreno que a não possuía ou, caso a revisão do PDM não garantisse a edificabilidade pretendida pela Selminho, aceitar a decisão dum tribunal arbitral (sem recurso para os tribunais judiciais) sobre uma indemnização num montante superior a um milhão de euros a pagar pelo município à imobiliária.
Escolhas políticas, decisões como as que aconteceram no caso Selminho não foram apenas violações grosseiras da legalidade, da imparcialidade e doutros deveres constantes do Estatuto dos Eleitos Locais (Lei nº 29/87). Constituíram uma rendição do município à ganância duma imobiliária e um elevado prejuízo para a cidade do Porto. E como tal “acordo”, na verdade uma cedência completa às pretensões ilegítimas duma empresa imobiliária, foi homologado pelo tribunal administrativo e fiscal do Porto, vai ser ainda necessária uma revisão da sentença de 10 de setembro de 2014 para que o mesmo seja nulo e de nenhum efeito.
O que está em causa no caso Selminho ?
Três ideias para quem queira defender o interesse público e os justos anseios populares:
1.ª – é preciso ser mais exigente na proteção e valorização do património público municipal: há ainda muitos terrenos e edifícios não registados a favor de entidades públicas como os municípios. Durante anos e anos, muitos presidentes de câmara não cuidaram de proteger o património municipal, como é sua obrigação. Mesmo depois da Lei nº 5-A/2002, que veio tornar obrigatória a apreciação na segunda sessão ordinária (em Abril) das assembleias municipais “do inventário de todos os bens, direitos e obrigações patrimoniais e respetiva avaliação”, em municípios como o do Porto essa obrigação legal nunca foi cumprida por Rui Rio (o tal que tanto insistia em contas certas) durante os seus 12 anos de mandato. E sob a presidência de Rui Moreira (que também fala em contas certas), nem o inventário dos prédios e outros bens patrimoniais do município foi apresentado na sessão de Abril de 2020, nem houve empenhamento político para a recuperação de outros terrenos junto à ponte da Arrábida que eram do município e que num empreendimento imobiliário ainda em curso irão proporcionar milhões de euros de ganho a quem deles se apropriou.
2ª – é preciso ser mais firme na oposição aos autarcas que se curvam ao poder económico: o solo com capacidade construtiva, pela sua elevada taxa de rendibilidade, é hoje um dos principais alvos das aplicações de capitais e dos fundos imobiliários. E há ainda tantas decisões autárquicas que não respeitam o bem comum, tanto desperdício financeiro em equipamentos sem uso, tanta receita municipal, como a derrama, por cobrar. Tanto alojamento digno em falta. Tanta área natural a proteger, tanto património cultural a valorizar, tanta árvore a plantar e espaço verde a criar. Tanta assimetria territorial a corrigir. E tanta resposta social por concretizar.
3.ª – é preciso mais escrutínio democrático e popular sobre a atuação dos/as eleitos/as: para além da atuação da justiça penal, que se saúda, no caso Selminho e noutros onde há fortes indícios da prática de crimes, é mesmo necessário maior exigência democrática aquando das eleições e no acompanhamento, que deve ser permanente, da ação autárquica. Exigir mais participação popular nas autarquias. Exigir mais e melhor informação. Exigir a prestação de contas. Nunca votar em quem atua como dono dum município ou duma freguesia. Apoiar quem se empenha no dia-a-dia na resposta aos problemas das pessoas.
Para que as áreas naturais, agrícolas e florestais tenham a dimensão adequada para uma interação positiva com as pessoas, para que os territórios onde vivemos sejam mais saudáveis, tenham em devida conta as alterações climáticas, privilegiem o transporte coletivo e os modos de deslocação suaves, que sejam espaços de convívio e partilha, socialmente mais justos e inclusivos. Para que em cada autarquia haja habitação, saúde, emprego, educação para todas e todos.
Texto: José Castro – jurista – membro da Concelhia do Porto do BE
Foto: pesquisa Web
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