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II Guerra Fria

António Pedro Dores

 

Imediatamente após o fim da Guerra Fria, discutiu-se o novo modo de utilizar os meios bélicos produzidos pela corrida aos armamentos capazes de destruir várias vezes o planeta. Em 1992, a Somália foi usada como primeiro exemplo de estado-falhado que deveria ser alvo de intervenção militar humanitária. Porque restava apenas uma superpotência, pois a União Soviética desaparecera, segundo a ONU, os militares ao seu serviço deveriam ser usados para proteger os direitos humanos, como as vidas somalis reduzidas à miséria, apanhadas no fogo cruzado dos senhores da guerra locais. De modo semelhante, os militares internacionais seriam usados para reorganizar as sociedades consideradas incapazes de lidar com desastres naturais (como no caso do Haiti, após o terramoto de 2010).

Com o fim da Guerra Fria, em 1989, os vencedores criaram a expectativa de nos tornarmos uma aldeia global, uma humanidade unida e solidária, utilizando os recursos existentes para vivermos todos bem e, logo, melhor. A ONU, organizada entre um sector de segurança e outro de direitos humanos, entendeu procurar sinergias entre ambos de modo a cumprir esse ideário. Os resultados foram desencorajadores para as populações e para a ONU. Até hoje, nem a Somália nem o Haiti recuperaram dos problemas que afectavam as suas populações, e os militares estrangeiros vieram criar problemas suplementares próprios da sua presença e excesso de autoridade não recorrível. Ainda que possam ser identificados aspectos positivos da presença militar internacional, como maior segurança quotidiana e processos políticos mais pacíficos, os direitos humanos das populações continuam a ser violados e não se vislumbra soluções à vista. Isto é, as campanhas militares humanitárias podem eventualmente impor baias às instituições do estado, mas as populações, de uma maneira ou outra, continuam desprotegidas e impedidas de se organizarem politicamente.

Isso mesmo se pode observar na Síria ou no Afeganistão ou no Iraque.

Com o ataque às Torres Gémeas, em 2001, um politicamente fragilizado presidente dos EUA aceitou lançar uma nova cruzada contra os mouros, em 2003, para continuar a proteger Jerusalém dos infiéis, com o apoio das antigas, já falidas e empertigadas superpotências, como a Inglaterra e a Espanha, servidas nos Açores pelo primeiro-ministro português, Durão Barroso, que assim ganhou para si uma fulgurante carreira na direita internacional.

Entre 1989 e 2001, os guerrilheiros mujahidin formados pelos EUA para combaterem contra a União Soviética, desempregados, reconverteram-se por conta própria. Usaram as políticas de globalização financeira e de privatização da guerra, organizadas pelos norte-americanos, para lutarem contra a indiferença árabe perante o drama dos palestinianos e pela reversão dos processos de modernização imperial. Anunciaram uma época de terrorismo suicida, com ataques inimagináveis aos centros do poder imperial. Apesar do terror, mobilizaram para seu lado alguns dos oprimidos deste mundo – não necessariamente pobres ou desvalidos – inimigos do império que se propunha humanizar a humanidade pela força das armas.

Ao consenso na ONU sobre o valor, ao menos experimental, das intervenções militares humanitárias, seguiu-se a imposição imperial de guerra ao terrorismo islâmico não identificado, sem fim à vista. Guerra que era concebida também como forma de policiar o mundo, de confundir policiamento e prisões com guerrilha privada e organização oficial da tortura, paga pelos EUA para seus fins políticos, como matar dirigentes inimigos para os apresentar aos eleitores americanos ou aterrorizar inimigos. O direito à retaliação foi reclamado pelos EUA. Ninguém esteve em condições de se opor.

Os drones assassinos banalizaram-se, sem nunca terem sido notícia. Chelsea Manning foi torturada pelos militares norte-americanos por ter fornecido informações a Julian Assange de vergonhosas acções militares. O jornalista sofre há mais de uma década prisão sob ordens judiciais ilegítimas conjugadas da Suécia, Inglaterra e EUA, por ter divulgado essas informações. Edward Snowden abandonou a sua vida nos EUA para evitar ser torturado, decidido a denunciar outra dimensão da guerra sob a globalização: as escutas generalizadas a toda a gente, incluindo e sobretudo a decisores políticos influentes, ainda que sejam aliados.

A teoria da guerra humanitária revelou-se um modo de legitimar a guerra, após o fim da Guerra Fria. Modo de associar a esperança da realização de uma humanidade emancipada à acção bélica dos impérios. Não resistiu mais de uma década, substituída pela guerra assimétrica, a guerra contra alvos não identificados ou secretos que se declaram, em abstrato, perigosos para a segurança nacional, como Manning, Assange e Snowden, entre outros. Com o abandono do Afeganistão, em 2021, abre-se uma nova fase da política belicista global. Os EUA reconhecem a presença de um novo candidato a assumir as responsabilidades e os benefícios de ser sede do império: Pequim. A nova estratégia, que dispensa o Afeganistão e a retórica dos direitos humanos, é a de Guerra Fria II. A infraestrutura terrorista anti-terrorista secreta entretanto criada (Schahill, 2015) não parece que vá ser desmantelada.

Os esforços de guerra alegadamente humanitários e a favor da democracia oferecem a qualquer candidato a ditador, tipo Trump, uma infraestrutura de terror produzida por um dos estados democráticos de referência, sem protestos dos outros.

 

Referência:

Schahill, J. (2015). Guerras Sujas. Marcador.

 

 Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

 

Foto: pesquisa Web

 

01out21

 

 

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