José Lopes
As portas para legitimar a precariedade e a mão-de-obra barata nos profissionais das Atividades de Enriquecimento Curricular (AEC), há muito foram escancaradas pelo próprio Ministério da Educação, que nunca assumiu para esta componente, a constituição de grupos de recrutamento específicos, nomeadamente para o 1.º ciclo e o recrutamento dos recursos humanos igual aos restantes grupos na educação, com contratos idênticos, que dignificassem e valorizassem as AEC, cada vez mais encaradas como ocupação de tempos mortos, em que já nem se consideram os seus profissionais como professores, mas técnicos que tomam conta de crianças. Desvalorização profissional que vem fazendo desistir potenciais candidatos perante as atuais condições de acentuada exploração e instabilidade profissional, em que as entidades públicas, como autarquias e escolas se desresponsabilizam da gestão, organização e abertura de concursos de professores para tais atividades, deixando esse papel à mercê de lóbis privados.
Uma tendência cada vez menos atrativa para docentes numa área de respostas sociais na escola pública muito à custa de mais precariedade e mão-de-obra barata, que prolifera, nesta designada pelo Ministério da Educação, “estratégia alargada de articulação entre o funcionamento da escola e a organização de respostas sociais no domínio do apoio à família”, assentam em três vertentes, como são as Atividades de Animação e de Apoio à Família na Educação Pré-Escolar (AAAF), Componente de Apoio à Família no 1.º ciclo do Ensino Básico (CAF) e as AEC, que, com “carácter facultativo e de natureza eminentemente lúdica, formativa e cultural”, incidem nomeadamente, “nos domínios desportivo, cientifico e tecnológico, de ligação da escola com o meio, de solidariedade e voluntariado e da dimensão europeia da educação”.
Trata-se de um enquadramento de tais atividades, pouco coerente com a entrega destas áreas no âmbito da educação à iniciativa privada, que através do estatuto de Instituição Particular de Solidariedade Social – IPSS e de utilidade pública, domina grande parte deste potencial “mercado”, através de contratos/programa com um significativo número de agrupamentos de escolas no país, garantido pelo orçamento de estado, mesmo com o pressuposto de associações sem fins lucrativos, quando se tem por base nas relações laborais, os contratos precários e os recibos verdes, com remunerações segundo os critérios das tabelas salariais tendencialmente baixas das IPSS, escapando assim aos valores mínimos legislados das remunerações dos professores afetos às AEC, que em horário completo, “não pode ser inferior ao do índice 126 da carreira dos educadores e dos professores dos ensinos básico e secundário, quando possuem habilitação igual à licenciatura e ao índice 89 nos restantes casos”.
Uma lógica economicista que desde sempre esteve presente no desenvolvimento de tais atividades e da sua desresponsabilização por parte do Ministério da Educação e dos municípios.
Com a municipalização a materializar-se num certo “silêncio” cúmplice e manifesto interesses de mais poderes autárquicos, opostos à regionalização democrática, a descentralização nos diferentes setores, mesmo em nome de maior proximidade dos cidadãos vem-se consolidando. No capitulo da educação, as AEC assumidas já nos primeiros anos letivos do século XX pelo Ministério da Educação como “oferta de atividades de complemento educativo, ocupação de tempos livres e apoio social”, foram apresentadas no âmbito da descentralização de competências para os municípios, “com o objetivo de obter avanços claros e sustentados na qualidade das aprendizagens dos alunos”, e já aí foi decretado que os municípios podiam celebrar contratos de trabalho a termo resolutivo, a tempo integral ou parcial, em nome de procedimentos céleres, segundo legislação da época, que se propunha, salvaguardar a “estabilidade laboral dos técnicos a contratar, assegurar o rápido e eficaz desempenho daquelas atividades”.
Mas foram sim, na linha das políticas neoliberais, sendo escancaradas portas com sucessivos reajustamentos legislativos, para no essencial garantirem neste capítulo, o recurso de mão-de-obra barata e precária promovida no seio da própria escola pública.
Após duas décadas de experiencias do tipo de gestão e organização das AEC, sempre pouco assumidas pelo Ministério da Educação na sua componente lúdico-pedagógica, a falta de recursos humanos também ao nível administrativo nos agrupamentos de escolas, para a realização dos processos de concursos, colocação e substituição de professores, vai acabando por pesar na cedência à contratualização de serviços prestados por empresas privadas, libertando-se as escolas de tal tarefa, para já, no que toca a AEC. Trata-se mesmo do culminar de um período de “resistência” manifestada por muitos agrupamentos de escolas e seus órgãos de gestão, à tentação de entregar as AEC totalmente à gestão e organização privada, ainda que sujeitas a avaliação das atividades previstas, para manter ou não os respetivos protocolos de parceria, com instituições privadas que se propõem trabalhar para as “comunidades alicerçando o tempo da escola a tempo inteiro com as AAAF, AEC e CAF, transformando a sociedade”, segundo objetivos da Associação Tempos Brilhantes, que garante profissionais com “competências e talentos diversos, capaz de provocar transformações (…)”, ainda que sujeitos a condições contratuais e salariais ao nível das IPSS, de duvidoso entusiasmo e incentivo para desenvolverem os seus talentos profissionais.
A abordagem de um tal tema decorreu certamente, com maior atenção em órgãos de gestão, como os conselhos gerais (CG) dos agrupamentos de escolas que entraram neste novo ano letivo, a entregar a gestão e organização das referidas atividades a uma entidade privada, tal é a pressão destas entidades de âmbito nacional e das suas condições concorrenciais, para “implementar projetos educativos e de inovação social”, como que substituindo-se ao papel fundamental da escola publica, em que se devia valorizar as AEC e seus profissionais, e não a sua acentuada descaraterização, na lógica do lucro e da consequente redução de custos com os recursos humanos, que se traduz na exploração de profissionais da educação, tantas vezes pagos a menos de 10 euros à hora, e incentivo à sua precariedade, em que não é respeitado tempo de serviço e já não entram pela graduação profissional.
Razões que só poderiam merecer voto contra nos conselhos gerais chamados a aprovarem tais negócios entre agrupamentos de escolas e estas empresas/instituições privadas que, com conivência do Estado, garantem respostas sociais na escola pública à custa de mais precariedade e mão-de-obra barata.
Foto: Pesquisa Web
01nov21