José Lopes
Quando no dia 6 de janeiro de 2021centenas de apoiantes e eleitores de extrema-direita, e do Partido Republicano de Donald Trump invadiram o Capitólio, deixando um rasto de vandalismo com exibições barbaras, estimulados por um mandato de governação populista, homofóbica, negacionista e fundamentalista, assente no retrocesso politico, social e ambiental, que culminariam nos apelos do então Presidente e candidato republicano derrotado, instigando o não reconhecimento da vitória do democrata Joe Biden em 20 de novembro de 2020, que contra todas as tentativas de Trump, incluindo judiciais, foi confirmado como novo Presidente dos EUA.
Tal cenário dantesco, de ameaças radicais domésticas, numa potência militar imperialista que aos olhos do Mundo se viu humilhada pelos seus próprios extremistas, antecipou as ameaças à liberdade e à democracia deixadas pela “herança” política de um mandato republicano contra direitos e conquistas civilizacionais como o exemplo do aborto, com a irónica garantia de serem negados no mandato democrata pelos magistrados ultraconservadores do Supremo Tribunal nomeados por Trump.
A proibição do aborto nos Estados Unidos, coloca este país, que aprovou tal direito das mulheres em 1973, em contraciclo da evolução da legalização a nível mundial, em que desde os anos 90, mais de meia centena de países (incluindo Portugal), descriminalizaram o aborto a exemplo de países da América Latina (Argentina, México e Colômbia) ainda no decorrer deste último ano. Mas também lá como cá, veio chamar atenção para o fim de direitos adquiridos, porque neste caso, se trata da conquista de um direito que continua ameaçado lá como cá.
Se vierem a prevalecer os argumentos da maioria dos juízes do Supremo para anular o direito ao aborto, recorrendo à tese “de que a Décima Quarta Emenda protege apenas os direitos geralmente reconhecidos em 1868, quando a emenda foi ratificada”, escancarando assim portas para um significativo número de estados dos EUA legislarem contra a interrupção voluntária da gravidez, o que acabarão aprovadas por congressos estaduais de maioria republicana, alguns dos quais já preparados para voltarem às leis anteriores a 1973 que proibiam o aborto. Outros direitos podem vir a ser negados, “entre eles o direito à contraceção, casamento entre pessoas do mesmo sexo e direitos LGBTQ”, (Expresso, 15/07/2022). Uma cruzada de retrocesso civilizacional que ainda, como se lê neste jornal, “levada à sua conclusão lógica, esse raciocínio poderia até permitir que os Estados proibissem o casamento inter-racial, como alguns fizeram até 1967”.
Com este ataque ao aborto legal, desenhado por Trump ainda como o Presidente que não convenceu o eleitorado para um segundo mandato. A “herança” ideológica republicana, protagonizada agora em plena governação do Partido Democrata pelos juízes da confiança do ex-presidente, representa também, a “perseguição a 60 milhões de pobres”, (Revista E, 27/05/2022), porque, como se lê ainda, “na prática, o aborto é um direito imaginário em grande parte do Sul dos Estados Unidos, onde uma série de leis estaduais o tornam quase inacessível”.
Preocupações, quando se olha para a Justiça que, segundo declarações ao Expresso, de Martin Luther King Jr, filho mais velho do histórico líder do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, “percebemos que existe um longo caminho a percorrer, desde logo porque parece alvejar acima de tudo a população pobre e afro-americana”. Uma denúncia em que questiona ainda, “por que razão o Supremo e os republicanos no Congresso querem perseguir mais de 60 milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza nos EUA, sendo que há uma percentagem desproporcional de afro-americanos afetados? Isto num país cuja economia vale quase 20 biliões de dólares (19 mil milhões de euros)”, conclui este protagonista de “várias frentes de batalha, num conflito que alastra como fogo selvagem”, com quem o Expresso conversou, segundo a peça jornalística “Avançar rumo ao passado”. Um desafio político e social para o qual não será suficiente o apelo eleitoral do Presidente Biden para os americanos elegerem representantes favoráveis à causa do aborto.
FIM DE DIREITOS ADQUIRIDOS LÁ COMO CÁ…
Protestos e lutas na defesa do direito ao aborto voltam a mobilizar muitos americanos que deram por adquiridos vários direitos. Mas lá como cá, a conquista do direito ao aborto exige reagir a “direitos imaginários”, mesmo no Serviço Nacional de Saúde (SNS), que por cá, também estão de certa forma identificados. “Em 15 anos, o acesso ao aborto estagnou. Há mulheres a irem do Alentejo e dos Açores a Lisboa e de Leiria a Coimbra para uma IVG”, (Expresso, 09/06/2022). Como é afirmado neste trabalho, “o aborto não está à mesma distância para todas. O caminho no interior do país, como em tantos outros pontos, diverge do do litoral. Há distritos inteiros onde o acesso falha. De acordo com números da Direção-Geral da Saúde”, a qual regista que só cerca de 69,8% dos hospitais do SNS “realizam consulta de interrupção voluntária da gravidez (IGV)”. Os restantes hospitais do SNS “não disponibilizam” esta consulta, e a exemplo do território entre Beja e Portalegre, “escasseia o serviço”. As mulheres “mesmo quando encaminhadas para o privado, há três dias obrigatórios entre a consulta prévia e o procedimento em si (…)”.
Casos há nos Açores, lê-se ainda, em que a consulta de IVG, depende da “deslocação e disponibilidade presencial de um médico especialista (externo)”, ou então “o procedimento é referenciar as utentes para uma unidade privada de saúde localizada em território continental”. Também em Cascais, “onde já existiu serviço, deixou de existir”, tal como falta em Setúbal e no Hospital Amadora-Sintra, localizado numa área “de grande densidade populacional”. Escreve ainda a jornalista no Expresso que, “dos hospitais da ARS de Lisboa e Vale do Tejo quase metade (6 em 13) não tem consulta de IVG. Em muitos nunca chegou a existir”, situação que se agrava com o surgimento dos “hospitais objetores”, em que predominam os médicos objetores de consciência, que sendo um direito individual, “como o sistema é precário e instável, por vezes deixam-se cair áreas consideradas secundárias”, segundo alertas de uma médica no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), no referido trabalho no semanário em que se refletem as preocupações de vários médicos da especialidade.
Quanto ao Norte, “parece ter mais pontos de consulta, com apenas um hospital sem o serviço, num total de 14”, enquanto para o interior centro não há, e acima de Coimbra “só existe Aveiro, com resposta pequena”, refere ainda este artigo sobre Saúde com o título “Um em cada três hospitais do SNS não faz abortos”.
Mas também do lado de cá do atlântico, sem os fundamentalismos exacerbados de lá, o retrocesso civilizacional pode surgir ao virar da esquina, quando a sociedade não questiona critérios de avaliação que dão origem a que, “médicos de família com utentes que fizeram aborto voluntário podem ser penalizados”, (Público, 10/05/2022). Segundo esta notícia “os médicos de família, assim como os restantes elementos das equipas, podem vir a ser avaliados por interrupções voluntárias da gravidez (IVG) realizadas pelas utentes da sua lista e pela existência de doenças sexualmente transmissíveis das mulheres. Em causa está a introdução de novos critérios de avaliação nas Unidades de Saúde Familiar modelo B (USF-B) nas atividades especificas, (…)”. Polémica que teve como resposta da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), uma exposição à comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, em que “repudia vivamente a desigualdade de género introduzida com esta vigilância”, defendendo “a reformulação imediata desta variável (…)”. Este sindicato afirma que, “a monotorização das doenças sexualmente transmissíveis nas mulheres – monitorização que não tem paralelo nos homens – configura uma discriminação de género”. Ou seja, a inclusão da IVG “neste domínio é sinal de retrocesso civilizacional”.
Com os cenários dramáticos dos incêndios a dominarem as atenções do país, abrandaram o “fogo” das polémicas na área da saúde, que surpreendentemente ou não, mostrou igualmente ao nível das urgências de Ginecologia e Obstetrícia as suas fragilidades. Um “fogo” que surpreendeu e desestabilizou as parturientes nos seus hospitais de referencia e acompanhamento, ao ponto de o primeiro-ministro António Costa que “segura Temido mas não quer mais falhas”, (Expresso, 24/06/2022), ter assumido a necessidade de uma “estrutura de referenciação de doentes, que evite que os hospitais continuem a ter de ligar uns para os outros à procura de vagas para os seus doentes que precisam de determinada especialidade”, a exemplo do que “chegou a ser feito durante a pandemia para as camas de cuidados intensivos”, lê-se nesta edição do jornal que entrevista ainda o Coordenador da comissão de acompanhamento das Urgências de obstetrícia, Diogo Ayres de Campos, que a propósito da articulação entre Urgências, afirma que, “a primeira medida é tentar que as contingências não sejam todas para o mesmo dia, antecipando ou passando para o dia seguinte. Se não for suficiente, vamos considerar a possibilidade de haver recursos centralizados, com equipas que serão deslocalizadas para outras Urgências. Será essa a recomendação da comissão”, afirmou ao jornal.
Curiosamente o clima de instabilidade resultante do encerramento de urgências obstétricas veio dar visibilidade a algumas das ideias que germinam na área da saúde, nomeadamente, uma direção executiva do SNS à parte do Ministério da Saúde, proposta pelo Governo no seguimento da Lei de Bases da Saúde, ou uma “reforma profunda da governação do SNS”, (Público 21/06/2022), defendida pelo relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, que dá relevo a uma aparente contradição com as dificuldades nos serviços, ao afirmar, que “se registou um aumento de mais de 30 mil profissionais de saúde”, recorrendo ao tema recorrente nos últimos anos pós-troika, da justa passagem das 40 para as 35 horas e ao que identificam por “aumento do absentismo” na função pública, o que leva à conclusão economicista de que, “não há ganhos de produtividade”, deixando portas abertas a novas e repetidas medidas de centralização de serviços, meios técnicos e humanos, ainda que em nome de maior qualidade e segurança nomeadamente na área especifica da obstetrícia. Lógicas que já em 1999 serviram de justificação para o encerramento da Maternidade do Hospital de Ovar.
A aposta para os investimentos na saúde, passam também pelo Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), que tem uma verba de 1,3 mil milhões de euros para a área da saúde, (Expresso, 24/06/2022), em que, relativamente à área da obstetrícia, os “privados já fizeram quase 30% dos partos na região de Lisboa em 2021”, (Público, 21/06/2022). Mesmo com a natalidade a diminuir, “os hospitais privados têm vindo a conquistar terreno aos do SNS”, um fenómeno que exige políticas que tratem preventivamente os males de que continua a padecer o SNS e os utentes que têm direito a um eficiente serviço de saúde público, como uma conquista continuadamente sujeita à cobiça de lucros e mais lucros, garantidos pelas receitas dos orçamentos de Estado (OE) à custa da saúde.
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