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Da influência das tecnologias públicas

Miguel S. Albergaria

 

Ainda recentemente, nas páginas do ‘Etc. e Tal’ (17/09/2022) e de outros órgãos de comunicação, surgiu a notícia de que a empresa municipal Domus Social, sob coordenação da Porto Digital, vai promover na Campanhã o projeto CommuniCity. Concretamente, pretende-se experimentar a disponibilização de artefactos tecnológicos digitais, com impacto na vida quotidiana, a uma população que assim desenvolverá a sua literacia digital. Um projeto na esteira do SynchroniCity, que versava a Internet das Coisas (IoT).

Projetos como esses evidenciam questões que são transversais a todas as tecnologias. Nomeadamente, relativas à influência destas últimas sobre os seus utilizadores, e as correspondentes opções feitas não só pelos designers e produtores, mas também por todos quantos aceitam e utilizam as tecnologias disponibilizadas.

Me parece que a muitos de nós, bem além daquela freguesia oriental do Porto, faltará alguma literacia sociotécnica para lidarmos com essas questões. Creio que as ferramentas exemplificadas em seguida nos ajudam nessa lida.

 As quatro combinações de ‘força’ e ‘visibilidade’ das tecnologias

De automóvel, entro numa rua estreita ou com curvas. Alguém, fosse dada a experiência de algum acidente concreto fosse por outra razão, ou até já algum algoritmo, então provavelmente de forma estatística, terá estabelecido que, nesse local, acima de cerca de 40km/h, a segurança e eficiência da circulação se reduz drasticamente. Algum decisor – humano ou digital – terá então determinado a colocação nesse local de um sinal a proibir a circulação acima daquela velocidade. Esta tecnologia é-me bem visível quando a utilizo. Já a força com que ela se impõe é irrelevante – não é o poste no passeio, a placa e o signo pintado que me impedem de conduzir a 80km/h.

Suponhamos que por enorme necessidade, ou por pura e simples parvoíce, atravesso a rua a essa última velocidade (sobrevivo) e, mais à frente, pretendo entrar por uma ruela que aquele legislador decidira fechar absolutamente ao tráfego. Para cumprir essa decisão, terá sido ali montado um sistema de bollards (cilindros) de aço que se retraiam abaixo da superfície mediante comandos eletromagnéticos fornecidos apenas a moradores ou comerciantes (não seria o meu caso). Esta tecnologia é-me tão percetível quanto a anterior. Mas, a não ser que eu tenha passado do carro para um tanque de guerra, esta agora impõe-se fisicamente.

Deixado o automóvel noutro sítio, nessa ruela paro num restaurante com o menu exposto à porta, entro e peço o prato cujo nome era o mais destacado no menu – isto é, na configuração deste último artefacto, a componente que tinha a função comunicacional de representar aquele prato fora evidenciada ao utilizador. Também é o prato mais caro, mas, antes de eu considerar os preços, já integrara a sugestão do menu.

À saída, dizem-me que apenas posso pagar com o cartão, felizmente tenho um comigo. Passam-no num leitor, lamentam simpaticamente não ter funcionado, passam-no num segundo aparelho, e saio depois de pagar o que era devido. Sem eu saber, neste aparelho também ficaram os dados de acesso à minha conta bancária.

Campanhã (Porto), onde será promovido o projeto CommuniCity – Foto: Filipa Brito

N. Tromp, P-P. Verbeek e P. Hekkert distinguem a influência das tecnologias sobre os seus utilizadores segundo as dimensões de ‘visibilidade’ e ‘força’ delas nas respetivas utilizações. Designam as exemplificadas pela placa metálica com um signo – visíveis, mas fracas – como ‘persuasivas’. As da classe dos cilindros metálicos – visíveis e fortes – como ‘coercivas’. As equivalentes à configuração de um expositor que destaque a sugestão de um comportamento – pouco visíveis e fracas – como ‘sedutoras’. E as que realizam funções secretas – tecnologias pouco visíveis, mas fortes – como ‘decisivas’.

Como facilmente se intui, quer a dimensão da influência dos designers e produtores das tecnologias sobre os utilizadores delas, quer a capacidade destes últimos se escolherem face a essas tecnologias, divergem nesses quatro quadrantes.

Por consequência, de cada vez que se pretenda resolver uma situação mediante a implementação de alguma tecnologia, aqueles designers e produtores não escapam à decisão do quadrante em que desenharão a tecnologia desejada. E todos os destinatários dessa proposta tecnológica – os seus possíveis utilizadores – não se livram de alguma corresponsabilidade pelo menos como eleitores para o órgão que a licencie. Isto, enquanto preservarmos uma democracia liberal.

 Liberdade individual e posição das tecnologias à-frente-dos-olhos

Precisamente para preservar a liberdade dessas múltiplas decisões, num regime demoliberal – sustentado não só por liberais mas também por conservadores e socialistas não autoritários – as tecnologias de utilização pública devem ser o mais visíveis possível.

Em particular, as coercivas devem ser tão reversíveis quanto tecnicamente possível – no respeito por eventuais futuras maiorias que as queiram desmantelar.

E as tecnologias que não forem reversíveis, como pontes etc., devem implicar nas respetivas decisões, sem prejuízo do tempo útil, deliberações públicas com explicitação dos fatores relevantes, das alternativas técnica e economicamente viáveis mais as respetivas consequências, e dos valores éticos segundo os quais uns desses parâmetros são privilegiados em detrimento de outros.

Com os decisores a assumir as responsabilidades, prática, da determinação do tempo útil para a deliberação; epistémica, do reconhecimento dos parâmetros e dos seus valores concretos; e ética, da hierarquia dos valores de decisão. É fácil de perceber com um exemplo: simplesmente o contrário do que se tem feito no caso do ‘novo aeroporto de Lisboa’.

Se além disso, nesse regime, votarmos por instituições formais (regras) estritamente liberais, e se, principalmente, desenvolvermos uma cultura liberal na interpretação dessas ou outras instituições (eis o cerne do obstáculo ao liberalismo estrito), na decisão sobre tecnologias públicas favoreceremos, no seio das visíveis, as especificamente persuasivas.

Voltando, porém, ao mero requisito demoliberal da maior visibilidade possível, os designers e produtores das tecnologias públicas ganharão em considerar a distinção, por S. Dorrestijn e H. Voordijk, entre quatro modos de encontro, digamos assim, entre as tecnologias e os respetivos utilizadores – parcialmente correspondentes aos anteriores quadrantes.

Designadamente, as tecnologias vísiveis encontram-se (na expressão destes autores) “before-the-eye” dos utilizadores. Ou seja, são-lhes patentes nas suas diversas dimensões ou implicações, de forma que os utilizadores as podem interpretar. Se esta interpretação facultar liberdade de utilização, essas tecnologias serão mesmo estritamente persuasivas.

Nos encontros físicos, em que as tecnologias e os corpos dos utilizadores se cruzam e condicionam mutuamente, as primeiras encontram-se “to-the-hand” dos segundos. Os autores acentuam a coerção destes cruzamentos físicos, como em lombas para redução da velocidade do tráfego. Mas a própria designação escolhida admite o manuseio de tecnologias, o qual pode ser livre e intencional, como nos usos de um martelo, do hardware de um computador etc. Para isso, estas tecnologias também se deverão encontrar à-frente-dos-olhos.

Tecnologias que, por outro lado, condicionem os contextos da habitação e trabalho humanos, encontram-se “behind-the-back”. E tecnologias que orientem, utópica ou distopicamente, aquele trabalho, encontram-se “above-the-head” de quem as considere. Haveremos de ter oportunidade para abordar aqui estas categorias.

Posto isso, continuando no pressuposto da sustentação do regime demoliberal, deveremos requerer que as tecnologias públicas sejam desenhadas de forma a se nos encontrarem tão à-frente-dos-olhos quanto possível. Aliás, não só em relação às configurações que propiciam as funções práticas que realizamos ao utilizá-las, mas mesmo nas implicações ou consequências psicológicas, físicas e socioculturais que essa utilização induza. No caso de software e soluções digitais, desde a facilidade de acesso a informação até à desconsideração do organismo e dos corpos em detrimento de avatares etc.

Esperemos que o CommuniCity se possa constituir também como um exemplo da consideração por estas dimensões sociotécnicas e políticas.

 

01nov22

 

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