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Discussão sobre o que seja o Império

António Pedro Dores

 

A discussão sobre o império, como a que envolveu Alberto Matos (artigo e resposta) e Mário Tomé, é de transcendente importância. É sobretudo importante quando envolve o leninismo – interessa-me no leninismo a profissionalização da política (adoptada à esquerda e à direita de forma generalizada) que caracterizou o século XX e se continua, sem denúncia das suas limitações. Será desejável que a discussão se aprofunde, de forma participada e alargada ao serviço de políticas emancipatórias capazes de reagir à perspectiva do Antropoceno, que estão, há que reconhecê-lo, longe do horizonte.

A minha contribuição sintética será para dizer que há um problema gravíssimo na confusão instalada a respeito da definição do que seja a política e o império. Essa confusão é cientificamente instigada pela separação disciplinar entre ciência política e relações internacionais. Na verdade, a separação fundacional de toda a hiperdisciplinaridade é bem evidente e especial e absurdamente rígida entre ciências naturais e ciências sociais. Por sua vez, o estado actual da ciência é apenas um dos reflexos da situação material, para usar uma expressão marxiana, do estado do império (sim, império em vez de capitalismo).

O império, o império moderno, estabeleceu uma radical separação entre a natureza (a ser anatomizada para melhor ser explorada) e a sociedade ungida por Deus – as elites – cuja função seria acumular aditivamente riqueza como demonstração prática da bênção divina, na análise de Max Weber sobre o que seja o espírito do capitalismo (a meu ver seria melhor designado espírito imperial). É ao império que as sociedades modernas organizam os seus rituais de adoração e submissão, nomeadamente através de sacrifícios de extracção a nível individual da força de trabalho como mercadoria auto-reconhecida como estranha às pessoas que deixamos de saber se ainda somos.

Esta perspectiva de análise permite compreender a inacção das sociedades civis actuais, muito agitadas, e com razão, mas desorientadas. Nós, as vítimas-cúmplices do império, esperamos das elites que sejam elas a abolir o império, orientando-nos para a saída airosa, tecnológica, democrática, em liberdade, contra todas as evidências. Isto é, os trabalhadores, os profissionais, os empreendedores olham para o céu, as organizações internacionais ao serviço das elites, a que os estados obedecem caninamente – sem alternativa, leninisticamente como profissionais fiéis aos seus empregadores – à espera de que o lobo se transforme em cordeiro ou o lobo mau seja, milagrosamente, a avozinha.

Para Mário Tomé, instintivamente, o império é norte-americano. Alberto Matos pergunta se não há outras nacionalidades igualmente imperialistas, nomeadamente na Europa? Nomeadamente aquele, o português, contra o qual a esquerda se bateu no tempo do fascismo, luta essa que foi favorecida pelas contradições entre o império português e o norte-americano na sua luta comum anti-comunista.

Para Alberto Matos o império é a elevação do critério de decisão dos capitalistas ao nível financeiro. Se se levar tal definição a sério, então a divisão do império (do sistema financeiro global procurado pelos BRIC e promovido pela China) é, entre aquilo que está a acontecer, a melhor oportunidade de reduzir a força do império e abrir campo a alternativas ao capitalismo (tese que Alberto Matos explicitamente rejeita, com razão). Essa parece ser a tese do PCP que Alberto Matos procura atacar, para a substituir por outra de apoio à Ucrânia, em nome da mobilização popular anti-imperial. É por isso que Mário Tomé lhe pergunta como se sente acompanhado pela extrema-direita. É de facto desagradável. Mas é esse o estado da esquerda profissionalizada: houve quem lhe chamasse o campismo. A opção de um lado ou do outro da guerra implica, necessariamente, com as estratégias financeiras de suporte às actividades partidárias. Isso é particularmente claro na Hungria e na Itália. Como é claro nas acusações objectivamente fundadas de ser a União Europeia que está a financiar parte importante do esforço de guerra russo.

A necessidade de destruição de capital cujo funcionamento se esgotou é global. As elites também estão à espera de conseguir encontrar, com apoio da ciência e da tecnologia, saídas controladas do canto sem saída em que se encontra a exploração da Terra. Estão convencidas de que é possível continuar a explorar a Terra – incluindo os recursos humanos – apesar do Antropoceno. Como dizem: não haver saída deve ser pensada como uma oportunidade para maximizar a exploração – como o império sempre fez por vício desde que foi inventado.

Aqui chegados, a pergunta é esta, dirigida à definição de império usada por Alberto Matos. Se o império é a financiarização do capitalismo, o famoso estado supremo do capitalismo de Lenine, o facto de as finanças estarem a enfraquecer o seu poder (nas bolsas e, muito antes disso, nas oportunidades de investimento) é sintoma de crise e de guerra contra os povos, ou melhor, contra a maior parte das componentes dos povos – aquilo que no século XIX se disse ser o proletariado, aqueles que tinham consciência de si como revolucionários. A pergunta é: onde está o equivalente actual do proletariado?

A pergunta a que a esquerda se escusa tentar responder por razões eleitoralistas é saber porque os descendentes do proletariado apoiam as guerras imperiais e a financiarização do capitalismo? Não são os partidos de esquerda que correspondem a esse apoio quando pedem aumentos de salário para que sejam os ricos a pagar a crise? Pedem arranjos financeiros que sejam mais favoráveis aos trabalhadores que fazem os impérios, o global e os nacionais? As esquerdas não podem ficar admiradas de não terem promovido (e continuarem a não promover) qualquer alternativa política nem ao império nem ao capitalismo. Não o fazem porque teriam de começar do zero, isto é, sem os apoios financeiros favorecidos pelos estados que permitem fazer política (pró-imperialista, como a pró-nacionalista) nas sociedades actuais.

A política americana mostra à evidência a solidariedade e as contradições entre globalistas e nacionalistas. A política chinesa parece ser muito mais consistente: são os vencedores da globalização e, juntamente com a Índia, os grandes contributos (a somar aos ocidentais) para que o Antropoceno seja em breve uma realidade. 

A ideia de o império ser a financiarização é uma das armadilhas em que as esquerdas oficiais, profissionalizadas, leninistas, orientadas pelas ciências sociais, se embrulharam. Mas o império é outra coisa.

Como Alberto Matos reconhece, e isso é melhor do que o instinto de Mário Tomé, o império tem por actores vários estados, incluindo o russo e o chinês. Todos os opositores a tais centros de decisão imperial – concorrentes e aliados, ao mesmo tempo – lutam (desorganizadamente) contra o mesmo império. Tal império, se for definido como financiarização, deixado a si próprio auto-destrói-se (como o capitalismo). Olhar para ele a destruir-se sem ter ideia do que fazer de diferente, a não ser procurar novas condições para voltar a fazer crescer a economia, voltar ao normal, voltar ao estado social, deixar de comer carne e de andar de avião, e outras perspectivas saudosistas e mistificadores, foi e continua a ser o calcanhar de Aquiles das políticas anti-imperialistas. A profissionalização das sociedades modernas e a omissão do reconhecimento da reprodução em modernidade das sociedades de ordens (estratos sociais com diferentes estatutos jurídicos) são elementos das redes que nos mantém vítimas-cúmplices do império, isto é, daquilo que une as belicosas elites de qualquer dos lados da guerra. Prova disso é o campismo, a escolha do lado da guerra em que apostar que divide as famílias, as organizações, os partidos, as sociedades.

O império é um modo de organização de relações interpessoais que escalou, por milénios, até às aristocracias medievais europeias. Os Descobrimentos instalaram uma missão imperial (expansão da Fé e do Império) que ainda hoje orienta as elites ocidentais e mundiais para explorarem a Terra e os seus recursos, incluindo os seus recursos humanos (escravos, assalariados, profissionais, empreendedores das plataformas). O capitalismo – e a banca – são instrumentos do espírito imperial: surgiram em forma de sistema por interesse das elites imperiais modernas que os controlam, ora para os promover ora para os destruir, em função dos interesses de classe que são os seus: acumular riqueza como um vício.

O espírito imperial vingou primeiro nas cortes aristocráticas europeias e, por erro de cálculo dos ideólogos anti-capitalistas, penetrou nas classes trabalhadores através do orgulho do trabalhador por servir a missão imperial de exploração da Terra e da sua própria força de trabalho. O espírito imperial está hoje generalizado. É incutido nas escolas, com a colaboração das famílias e irreconhecível como artificio estranho e diabólico que nos põe a trabalhar para os nossos donos, a quem idolatramos, mesmo quando os maldizemos.

O velho Homem-Novo revelou-se imperial e está, com o império e o capitalismo, num rumo suicidário que parece inevitável, dado os vícios imperialistas estarem incorporados nos povos. Como os russos e os ucranianos que estão orgulhos dos respectivos países, ou a combater contrariados, aspiram a subidas do ranking imperial das nações, os povos que assistem à guerra preocupam-se com o mesmo: como subir no ranking, incluindo os sacrifícios que são indispensáveis para tal, por exemplo, trabalhando mais pelos salários disponíveis em perda.

O império é os EUA, a globalização (financiarização neo-liberal) em transição para a sede em Pequim ou um estado de espírito milenar que foi democratizado num processo semi-milenar que todos estamos obrigados a adoptar quando nos expressamos (porque a cultura aprendida nas escolas nos prende à missão imperial em curso e em crise)?

 

 

Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

 

 

Imagem: pesquisa web

 

01nov22

 

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