Miguel S. Albergaria
Neste verão foi notícia o caso do jovem inglês Archie Battersbee, que se encontrava em morte cerebral após ter infligido a si próprio um procedimento de asfixia, alegadamente, por corresponder ao Blackout Challenge na rede social TikTok. O desafio é precisamente que cada destinatário se asfixie até perder os sentidos. Na linha, aliás, de outros desafios como o Baleia Azul, o Benadryl etc.
Muitas pessoas reclamaram então alguma regulamentação dos conteúdos desses novos canais de comunicação. Por sinal, dias antes, o Parlamento Europeu tinha votado favoravelmente a Lei dos Serviços Digitais – a aprovar depois pelo Conselho da UE.
Mas a alguns de nós não é fácil dormir descansados à sombra das instituições legislativas. Pois estas têm oscilado entre o atraso de quaisquer tais intervenções e, numa inclinação logo para o extremo regulamentador oposto, no nosso país até a Iniciativa Liberal demorou a denunciar o art. 6º da ‘Carta de Direitos Humanos na Era Digital’ (parecia saído da ‘Conversa em Família’ de Marcelo Caetano na RTP, quando o Presidente do Conselho disse que nada do que era do interesse público era escondido, mas competia ao Estado determinar o que fosse desse interesse).
‘Policy vacuums’ e a exigência liberal
Em geral, numa civilização global marcada por novas tecnologias que estão a subverter os tradicionais estatutos de “ferramenta”, de “natureza” e mesmo de “ser humano”, temos de atender ao alerta de James H. Moor, precisamente um dos fundadores da ética dos computadores ou ‘ciberética’, para a possibilidade de as inovações tecnológicas abrirem ‘policy vacuums’.
Será aqui o caso da facilidade de acesso, mediante a Internet e smartphones ou PC, a conteúdos cujo acesso televisivo etc. podia ser razoavelmente controlado com a regulação dos horários de transmissão, a classificação de conteúdos…
A possibilidade de alguma regulamentação da produção e utilização das tecnologias de informação e comunicação (TIC), no entanto, remete-nos para a questão de algum limite da liberdade de expressão e comunicação, e para o modo da sua aplicação.
Isso não constitui qualquer problema para todos quantos “have been talking to Jesus all [their lives]” (Genesis). Ou que têm falado antes com a Natureza, com as respetivas nações, com o sentido da história, com as essências de cada minoria étnico-cultural, de género etc. Dessas suas conversas, trazem a iluminação para o sentido em que se impõe orientar a comunicação entre as restantes pessoas. E a sua (dos iluminados) investidura do direito e até do dever de o fazer.
Enquanto, porém, o número desses telemóveis abençoados continuar privado, quaisquer justificações do conteúdo de tais conversas permanecem igualmente privadas. Assim, as restantes pessoas não as podem ponderar. Apenas se se submeterem ao paternalismo dos iluminados, se não até à violência destes, aquelas outras pessoas se converterão. Mas tanto a violência quanto mesmo o paternalismo são inaceitáveis para quem coloca a liberdade individual no topo da pirâmide dos valores políticos. Enquanto sustentarmos a democracia liberal, pois, o alcance prático daquelas conversas deve restar tão limitado quanto o conteúdo delas.
À volta do Princípio do dano alheio
No seu seio dessa heterogénea família liberal, tenderemos a enfrentar quaisquer vácuos legais com base no Princípio do dano alheio, de John Stuart Mill: as ações de alguém apenas devem ser restringidas, então se necessário mediante a força coerciva das instituições estatais, quando prejudicam outrem.
Mas este é um caminho das pedras (como compreendemos bem anseios de clarividência e de retidão garantida como o cantado pelos Genesis!).
Com efeito, para evitarmos classificar como ‘prejuízo’, por exemplo, vacinas que causem alguma dor ou febre, definimo-lo como um mal consentido. Mas o que constitui ‘consentimento’? – será uma disposição mental… como se reconhece? Será um comportamento verbal e/ou não verbal… mas não podem estes ser coagidos ou muito influenciados? E como se determina quem tem autoridade de consentimento? – em relação a alguém com deficiência mental profunda, e se for ligeira, ou se esse alguém for sociotecnicamente iliterato, ou apenas com uma vida profissional que lhe não dê tempo e descanso para refletir…
Mais: o ‘outro’ referido por esse princípio moral inclui animais, como cães? E se forem galinhas?…
Enfim, especificamente sobre um vácuo ciberético relativamente aos conteúdos publicados, o facto é que, nas atuais TIC, a fonte da comunicação (pessoa que a gera e envia o sinal da mensagem mediante um aparelho emissor) não interfere fisicamente com o destino (quem a recebe mediante um recetor). Suponhamos a comunicação referida no início: esse destinatário, cognitivamente, tem sempre de interpretar a mensagem suportada pelo sinal – no caso do Blackout Challenge, ou apenas como uma fantasia a imaginar, ou já como algum ensaio comportamental, ou mesmo como um ato a cumprir –; volitivamente, tem de decidir a respetiva implementação; e, praticamente, tem de ter as condições físicas de o fazer.
Quais serão, assim, os pesos das responsabilidades, respetivamente, de quem se limita a determinar uma fórmula e emitir o respetivo sinal eletromagnético, e de quem aciona e sintoniza o recetor, constitui a mensagem pela interpretação que faz daquela fórmula, se motiva a implementá-la comportamentalmente?
Por uma ciberdeontologia minimalista
À falta de melhor e dada a urgência de alguma resposta a um vácuo legal que ainda se verifica, podemos acordar um mínimo denominador comum em relação aos outros reconhecidos no Princípio do dano alheio: serão todos quantos, pelo menos, participem direta e voluntariamente nas interações comuns. Julgo que mesmo quem não reivindica qualquer iluminação será capaz de os reconhecer de forma aproximada.
Designadamente, os cães, as galinhas etc. participam diretamente, mas não é claro que o façam por vontade própria. Em troca, entidades imateriais – p. ex. o anjo Gabriel apresentando o ‘Corão’ a Maomé, ou Nossa Senhora em Fátima – poderão ter essa vontade, mas só intervêm mediante os seus sacerdotes materiais, não satisfazem, pois, a primeira condição.
Quem satisfaz ambas são agentes como escritores, cuja liberdade deve ser defendida quando outras pessoas decidem que, noutro exemplo também deste verão, os textos dos primeiros ofendem algum interlocutor privado dos segundos, e estes se dispõem a esfaquear aqueles autores.
Quanto à publicação de conteúdos como o Blackout Challenge, colocam-se questões sobre consentimento dos destinatários e sobre um paternalismo de quem controle essa publicação. Mas, numa rede social dirigida eminentemente a crianças e adolescentes, estamos legitimados para assumir os resultados obtidos desde há décadas pela psicologia do desenvolvimento. E invocar as menoridades cognitiva e volitiva das crianças e mesmo adolescentes, não acompanhadas por falta de capacidade física em particular dos últimos, para reclamar uma intervenção do Estado em tais comunicações digitais.
Admitiremos, assim, que o Princípio do dano alheio não se aplica apenas a cada agente, negativamente, na mera anulação dos seus comportamentos prejudiciais a outrem. Aplicar-se-á ainda às pessoas e instituições (como as do Estado) perante ações de segundos (como os produtores do Blackout e os gestores do TikTok) que prejudiquem terceiros vulneráveis (como os jovens utilizadores dessa rede). Prescrevendo-se, positivamente, uma intervenção dos primeiros que obste ao dano dos últimos.
Relativamente a um controlo da comunicação em geral no espaço digital, evitar qualquer paternalismo andará perto de uma quadratura do círculo. Mas tais pedras concetuais ficam já para o acompanhamento, além destas linhas, dessas iniciativas legislativas e respetiva execução. Aqui, fica apenas o voto para que se mantenham minimalistas.
01out22
“para evitarmos classificar como ‘prejuízo’, por exemplo, vacinas que causem alguma dor ou febre, definimo-lo como um mal não consentido”
(estes ‘não’ que pensamos, mas nos escapa a sua escrita, passam a ser lidos como se lá estivessem, até ao dia em que olhemos para o texto enfim com os olhos distantes de leitor!)