Ricardo Guerra
Vejo o meu calendário eletrónico e quase tropeço no meu próprio espanto: o dia 22 de setembro chegou. Aflijo-me. Porquê? Porque é o dia oficial para entregar as crónicas intemporais à direção deste jornal que vos acolhe. Deparo-me com este facto e sinto-me mudo; sinto-me quase empedernido – efeito colateral de todas as constatações que importam.
Começo a pensar em retrospetiva, procuro fazer uma análise dos últimos tempos, das preocupações mais vorazes que me assomaram o coração, de novidades de renome que possa partilhar com os meus leitores… Porém, não me recordo de nada, sou acometido apenas por uma paz doce e graciosa. Por entre a azáfama dos primeiros dias de aulas que me rodeia, da chegada de caloiros, do bulício dos serviços académicos e dos serviços de mentoria e da correria para aqui e para acolá… Eu estou em paz. Calmo, satisfeito com o que o futuro me reserva, a nível profissional e pessoal. Estou muito, muito feliz.
Porém, não vá o diabo tecê-las e fazer-me tropeçar, desta vez, não no meu espanto mas no infortúnio, reconheço o meu privilégio. O privilégio que é não ter nada para dizer, num mundo como o de hoje. O privilégio que é não ver a minha Faculdade em risco de ser bombardeada em nome de uma guerra sem sentido algum, o privilégio que é não ter de sentir na pele a dificuldade que existe em encontrar um quarto para viver a um preço acessível… O privilégio que é poder custear uma possível candidatura a Erasmus, o privilégio que é poder sonhar mais além e ter apenas o céu como limite – não a precariedade financeira ou condições de saúde limitantes.
Estou feliz, mas ao mesmo tempo, esta é uma felicidade agridoce porque estas e tantas outras notícias nos têm provado que o mundo não é tão bonito como nos ensinam nos contos de fadas – embora eu esteja, neste momento, a viver um verdadeiro conto de fadas.
Ao mesmo tempo, descobri algo novo sobre mim: ser feliz é, também, ser-se calmo, encontrar uma tranquilidade e uma firmeza na nossa identidade que não tinha antes sido descoberta. Ser feliz é sermos nós mesmos. Não é sorrir ansiosamente para o ar, à espera da validação de todos aqueles que nos rodeiam, como migalhas que nos levam de volta a uma casa a que nunca pertencemos de verdade. Porque não, nós não pertencemos às “casas” ou “caixas” em que nos colocam. Nós temos as nossas raízes, mas somos nós que construímos o nosso telhado.
O nosso passado estrutura as paredes, mas só o nosso presente as pode consolidar e lhe fornecer a resistência necessária para enfrentar as intempéries. E, às vezes, só nós sabemos a força das tempestades, só nós ouvimos o ribombar dos trovões… Mas a bonança aparece quando menos esperamos, numa brecha de luz que não notámos antes no cenário da nossa vida. E, como dizia Leonard Cohen: em tudo há uma fenda, mas é assim que a luz penetra.
Ia dar por terminada esta reflexão, com uma conclusão formal que acusa o meu papel recém-adquirido de ‘secretário que escreve atas’. Mas isso fez-me pensar em como o ser humano é multi-facetado. Somos filhos, irmãos, netos, amigos, amantes, secretários, coordenadores, estudantes… Nos filmes, deixamo-nos inspirar pelo herói que se move por uma única paixão, quer seja um ideal amoroso ou um ideal profissional – porém, como resistir a explorar todas as nossas vertentes? Como não percorrer esses caminhos que nos levam a divergir tanto de nós mesmos – e que ainda assim fazem todos parte do que somos?
Regressamos, claro, ao tema do privilégio e de como esses caminhos estão muito mais acessíveis a uns do que a outros… Porém, surpreende-me esta riqueza humana, esta capacidade de ir muito além da Taprobana, dos limites que, sem querer, nos impomos. Somos tão mais do que achamos… Por que não tentamos ser tudo?
Certo, não podemos ser tudo, mas também não podemos não ser nada. A chave está no equilíbrio – no nosso próprio equilíbrio, individual, que não se encontra à superfície. É preciso mergulhar para o descobrir, ir mais além, navegar por mares nunca dantes navegados. E eu sinto-me, finalmente, mais que pronto para entrar nessa vi(r)agem. Nessa vi(r)agem em direção à vida (mais) adulta. Tenho 20 anos e sinto-me como uma criança, porque parece que a vida começa agora. E não começa mesmo? A vida é a sério agora, o momento é já. E eu estou muito feliz por ver o sol a despontar em todas as manhãs que se aproximam!
Com muito carinho,
Do vosso Ricardo
P.S.: O meu lado de secretário está fora de controlo. Esta crónica começou a ser escrita às 00h30m do dia 22 de setembro e foi terminada às 01h19m do mesmo dia. Sem mais nada a acrescentar, dou por terminada esta crónica, com um último desejo: sejam FELIZES!
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