Menu Fechar

A Convenção da IL e uma conceção pragmática da liberdade individual

O que está primeiramente em causa na próxima Convenção Nacional da Iniciativa Liberal? Haverá sequer alguma questão cuja resposta deva ser primeiramente tida em conta por condicionar as restantes?

A segunda pergunta tem prioridade lógica sobre a primeira, uma vez que só uma sua resposta afirmativa propicia a anterior. Ora, as movimentações de que a comunicação social está a dar conta indiciam estar em causa uma questão ideológica básica. Que assoma, pontualmente, na divergência entre algumas posições de Rui Rocha e de Carla Castro, candidatos à presidência do partido. Mas que, de forma mais evidente, se apresenta na irredutibilidade entre essas candidaturas e uma corrente de ditos ‘liberais clássicos’. Essa questão ideológica, porém, julgo que assenta noutra ainda mais básica, a qual ultrapassa o âmbito estritamente político. É a esta última que o título acima faz referência.

A questão ideológica do liberalismo foi formulada por Isaiah Berlin como uma tensão entre as conceções negativa e positiva de liberdade individual. A primeira é constituída pela ausência de coerções externas sobre o indivíduo, salvo as que lhe dificultem a coerção dele sobre terceiros. A segunda conceção é constituída pela faculdade, e assim pela disponibilidade dos respetivos fatores, de realização do potencial do indivíduo. Cada um destes conceitos, porém, parece remeter-se ao outro.

Suponhamos os filhos de um casal de toxicodependentes. Se forem deixados sem interferência externa, serão (negativamente) livres para a elevada probabilidade de morrerem de fome ou destino equivalente. Ou seja, se a liberdade implica a existência de alternativas para escolher, a mera ausência de coerções pode anular a liberdade. Para que os desvalidos tenham (positivamente) outras possibilidades, será necessário facultar-lhes condições que compensem as que herdaram. Essa necessidade obsta a que o apoio seja apenas contingente e voluntarista. Resta a intervenção do Estado. Mas, para que este disponha de tais meios, terá de impor impostos além dos necessários para a segurança do Estado e dos cidadãos. Ou seja, se a liberdade implica a capacidade de escolha, as medidas de compensação limitam a liberdade até à possibilidade de anulação.

Para escapar a este dilema, podemos afastar-nos da noção intuitiva de liberdade individual, que supõe alternativas e decisão própria. Mas, então, comprometemo-nos com a espinhosa tarefa de uma outra conceção que seja consistente e intersubjetivamente aceitável.

Em alternativa, tem-nos restado dosear aqueles dois conceitos de liberdade. É neste contexto que os liberais clássicos, especialmente depois os libertários, privilegiam a inclinação negativa. Enquanto os liberais ditos novos, ou sociais, sublinham a positiva.

Entretanto, as tradições políticas não são meros jogos concetuais, mas sim processos históricos constituídos também por decisões e ações circunstanciais. Na tradição liberal, à referida tensão concetual acresce que alguns conservadores em matéria moral ou de costumes, bem como da organização social de que beneficiem, têm adotado teses liberais clássicas em matéria económica.

Por outro lado, os ditos comunitaristas, se partilham o voto pela limitação da intervenção do Estado na vida dos indivíduos, em troca radicam estes últimos nas respetivas comunidades e tradições locais. De forma que, além de a noção de liberdade individual não ser unívoca, o âmbito de uma sua aplicação também não é claro ou pacífico.

Esta circunstância facilmente surge aos racionalistas como uma contradição interna ao conceito de liberdade individual, ou pelo menos como uma sua equivocidade. E, para resolverem uma e outra condições, embarcam em purgas que extirpem de um desejado conceito homogéneo quaisquer notas que se não coadunem com as restantes. O sinal disto são as denúncias e recriminações contra os ‘liberais’ que afinal são socialistas e não sabiam, ou sonhadores libertários cuja ação apenas destrói qualquer liberdade, ou idiotas úteis à agenda dos conservadores etc.

Esses empreendimentos puristas presumem que as ideias são a base da constituição daquilo que há. Mas por que será assim?

Este não é o local para o discutir. Todavia, podemos ao menos reservar a possibilidade de entender conceitos como liberdade, indivíduo e comunidade humana etc. como recursos para o delineamento dos contornos de situações concretas complexas e emaranhadas, como ferramentas para intervir em prol de algum desemaranhamento delas.

A tensão entre liberdades negativa e positiva, assim, constitui-se como um espectro de quadros de interpretação e de ação, digamos, uma série de sucessivas dimensões de um modelo de ferramenta de carpintaria política. O facto de serem diversos não os diminui, tal como a univocidade não dignificaria o conceito, pela simples razão de que não é deles que primeiramente se trata. Antes, o que de cada vez está em causa é a situação dada. Nestas, haver diversos quadros de interpretação apenas aumenta a capacidade do intérprete e agente. Assim tenha este as virtudes epistémicas para escolher uma ferramenta que faculte algum desemaranhamento da situação, e para recorrer a outra variante no ferramental quando a evolução do processo lho sugira.

Para desemaranharmos estas linhas, mas sem alcance além destas, chamemos ‘pragmática’ a esta outra forma de concebermos quaisquer noções.

Posto isto, a anterior conceção racionalista de liberdade individual constitui-se como uma possibilidade teórica e mental. Mas, de modo nenhum, como uma necessidade ou naturalidade.

Pelo que, dada a diversidade de aceções de liberdade na história das ideias e perante o expectável confronto entre elas na Convenção Nacional da IL, cada participante nesta começará logicamente por escolher em qual dessas (e porventura outras) posições básicas constituirá esse ou outros conceitos. Para, em consequência, ou enveredar por cuidados puristas, ou procurar e discutir as ferramentas concetuais que facultem uma liberalização da sociedade portuguesa concretamente nesta terceira década do século, enquanto avança a IV Revolução Industrial, a UE se balcaniza ou vira a leste etc.

 

Miguel S. Albergaria

 

01dez22

Partilhe:

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.