Maria Manuela Aguiar
1– Vivo numa cidade sem cinema. Ou que para lá caminha, a passos largos. Falo de Espinho, terra onde não faltam as tradições cinéfilas, nem os equipamentos. Falta-lhe, não só agora, mas desde há anos, visão e vontade política. É um caso de estudo… Esteve entre as primeiras urbes portuguesas, onde o cinema se exibiu em salas que fizeram história.
Quando eu era menina, no final da década de 40 e nas décadas seguintes, o cinema era uma das grandes atrações de Espinho, a par do casino, da maior piscina da península, das esplanadas e cafés- tertúlia, (abertos a senhoras!), da movida da Avenida 8, com o vaivém de gente elegante sob as palmeiras, e, naturalmente, o mar, o seu mar de ondas altas.
Nem o Porto, com tantas e tão boas salas de espetáculos, a suplantava, ao menos quantitativamente. O Teatro São Pedro e o Cine Teatro do Grande Casino de Espinho ofereciam-nos sessenta filmes por mês, com renovação quotidiana de um cartaz destinado a todos os gostos, e em instalações de luxo.
No início do mês, cumpria-se o ritual de ir às bilheteiras do São Pedro e do Casino pedir o programa (quinzenal ou mensal). Muitas vezes, dois bons filmes coincidiam no mesmo dia e nós, as meninas, passávamos tarde e noite diante do grande ecrã. À noite com os pais, sempre disponíveis para nos acompanharem. Éramos uma família de cinéfilos. Foi com meu avô Manuel que me ‘viciei’, desde cedo, na sétima arte. Lembro-me de ir pela sua mão, com cinco ou seis anos, ao Batalha recém-reinaugurado. Via e apreciava tudo – comédias, dramas, operetas, “westerns” … Tudo exceto filmes infantis!
2 – Guardei, como recordação, alguns desses ‘Programas’ espinhenses, em papel colorido (azul ou rosa pálido, verde, laranja…) – com as suas sintéticas notas sobre cada sessão. Do São Pedro folheei, à sorte, um programa de agosto de 1962 e outro de setembro de 1981. Duas décadas de intervalo, sem alteração do estilo da sinopse de propaganda, ou do horário das sessões (3,30 da tarde e 9,45 da noite)! Porém, talvez por mero acaso, difere bastante o nível da programação. 1962 fica a ganhar com filmes memoráveis como ‘Esplendor na relva’, ‘Rocco e os seus irmãos’, ‘O Desconhecido do Norte Expresso’ (do “genial Hitchcock”, diz a propaganda), ‘O Rosto’ (do “mestre Ingmar Bergman”, segundo a nota), ‘A quimera do Ouro’ (“com o incomparável e genial Charlot”) e, em cinemascope, ‘A Colina da Saudade’, ‘Topaze’, ‘Austerlitz’…

Os realizadores, com a exceção de Hitchcock e de Bergman são omitidos. Até Chaplin é apenas destacado como ator! Na primeira linha estão os intérpretes (Audrey Hepburn, a encantadora “Boneca de luxo”, Vittorio de Sica em ‘O inimigo de minha mulher’ e ‘O mundo dos milagres’). Compreensível, pois eram, sobretudo, as grandes estrelas que enchiam plateias e balcões. Naquele agosto, a minha assiduidade no S. Pedro terá sido enorme. Não assim em setembro de 81, com ‘Django’, ‘Mais forte que Bruce Lee’ e similares…
Na muito musculosa seleção, terei visto, embora não me recorde, Stuart Granger em ‘O grande atirador’, Sean Connery em ‘007 Só se vive duas vezes’ e Steve Mc Queen em ‘Tom Horn’.
No Casino, de 1 a 10 de setembro de 1968, talvez não tenha perdido o anunciado “filme dos três óscares”, ‘Grande Prémio’, assim como o Mr Solo “, adjetivado com uma série de pontos de exclamação: “Implacável! Atrevido! Eletrizante”.

3 – Hoje, o São Pedro já só existe na nossa memória – foi demolido, barbaramente, na meia década de oitenta – e o Casino, que possui ainda uma das mais belas e confortáveis salas de cinema do país, fechou portas, aparentemente, sem protestos de ninguém. Ergueu-se, entretanto, o ‘Centro Multimeios’, que, na melhor das hipóteses, propicia à população um filme por semana – quatro por mês. E nem isso, em regra, assegura, porque os hiatos na programação são frequentes e vistos como coisa normal.
O interesse dos poderes públicos pelo cinema parece esgotar-se nos festivais – Cinanima, FEST – e no cineclube, que utiliza o magnífico Auditório do Casino. É de saudar e louvar, sem sombra de dúvida, esse esforço de entidades privadas, que mantêm Espinho no mapa cinematográfico. Todavia, isso não substitui, nem compensa a falta de regularidade e de diversidade da oferta, que são os fatores fundamentais de uma política cultural capaz de fomentar o gosto pela frequência das salas de espetáculos, a resistência ao declínio, para muitos fatal, das audiências.

Estou entre os que não acreditam nessa fatalidade! Vou bem perto, ao Porto, ao centro da cidade, buscar exemplos que provem o contrário; o do Cinema Trindade e, neste final de 2022, o do mítico Cinema Batalha renascido. O futuro do Batalha está apenas a começar, mas não o do Cinema Trindade, que, com duas excelentes salas, de dimensão média, vem apresentando, há anos, uma programação variada e de qualidade. Tomo, para exemplificar, a 5.ª feira, 29 de dezembro, com sete filmes em exibição, nas duas salas, em diferentes horários: ‘Os Fabelmans’ de Spielberg, os filmes portugueses ‘O Natal de Bruno Aleixo’, e ‘Lobo e cão’, uma longa metragem premiada em Veneza (‘Ossos e tudo’), a comédia ‘Ruído branco’, a evocação da Imperatriz Sissi em ‘Corsage’ e o thriller sul-coreano ‘Decisão de partir’.
Agora, que a pandemia o vai permitindo, tenho imenso prazer em voltar ao Trindade, descer a rua do Almada, em direção a Campanhã, e beber um chocolate quente no Guarani. Mas, como munícipe de Espinho, gostaria de alternar as visitas ao Porto com a ida, a pé, aos cinemas da terra. Um terço da programação cotidiana do Trindade já faria de Espinho cidade de cinema com futuro…
Fotos: pesquisa Web
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