Maximina Girão Ribeiro
Este edifício está incontestavelmente ligado à vida e à obra do pintor, ilustrador, poeta e professor, António Carneiro e à sua família que o habitou.

Parece-me incompreensível falar de uma casa tão emblemática, sem falar dos seus habitantes, sobretudo aquele que a mandou construir, ou seja, o talentoso António Carneiro, de seu nome completo António Teixeira Carneiro Júnior que nasceu a 16 de Setembro de 1872, em S. Gonçalo de Amarante. Era proveniente de uma família muito modesta e teve uma infância difícil, não só pela pobreza, como pelo desamparo pois, aos sete anos, foi abandonado pelo pai, António Teixeira Carneiro e, pouco tempo depois, ficou órfão de mãe, Francisca Rosa de Jesus, uma exposta da Roda de S. Gonçalo. Como da parte de sua mãe não se lhe conhecia família, em 1879, António foi entregue no internato do Asilo do Barão de Nova Sintra, no Porto, instituição pertencente à Santa Casa da Misericórdia desta cidade, onde frequentou o ensino primário. Desde muito cedo, a sua inclinação para o desenho era notória, quando começou a copiar figuras que encontrava em textos religiosos ou em periódicos da época.
Com o apoio da Santa Casa da Misericórdia do Porto, em 1884, António ingressou na Academia Portuense de Belas Artes, onde foi aluno, entre outros grandes nomes, de Soares dos Reis e de Marques de Oliveira. Nesta instituição concluiu o Curso de Desenho Histórico, com a classificação final de dezoito valores. Matriculou-se, depois, no curso de Escultura, do qual desistiu, após a morte de Soares dos Reis. Em 1897, foi como bolseiro para Paris, onde frequentou a renomada Academia Julian vivendo, na capital francesa, já casado com Rosa Carneiro. Desta união nasceram três filhos: Cláudio (1895-1963), Maria Josefina (1898-1925) e Carlos (1900-1971). O primeiro dos seus descendentes veio a notabilizar-se como músico e compositor, a filha morreu ainda jovem, vítima de tuberculose e, o mais novo, foi pintor.



De regresso a Portugal, em 1911, foi convidado para leccionar a disciplina de Desenho de Figura, na Escola de Belas Artes do Porto. Assim, além de se distinguir como pintor e ilustrador de dezenas de livros (capas e ilustração dos textos) exerceu, também, a carreira de professor.
Nos anos 20 do século passado, apesar das constantes dificuldades financeiras, António Carneiro mandou construir a sua casa, com o apoio de amigos como Alberto de Oliveira e do mecenato do marquês da Praia e Monforte. Mais tarde, seria o capitalista (brasileiro de torna-viagem) e coleccionador, Domingos Rufino, a custear a construção do seu ateliê.

O sonho só se concretizou, em 1925 e o edifício iria servir para residência e como ateliê de António Carneiro, lugar onde este concebeu muitas das suas obras pictóricas. Posteriormente, este espaço também foi usado por seu filho Carlos Carneiro (1900-1971), também pintor. Aqui viveu, igualmente, o outro filho de António Carneiro, o músico e compositor Cláudio Carneiro (1895-1963), que chegou a ser director do Conservatório de Música do Porto (1955/1958).
“Com o ateliê construído, usufruiu no fim de vida da amplitude espacial e iluminação propícia ao efeito artístico que a sua obra, apesar dos condicionalismos precedentes, conseguira fazer adivinhar permanentemente. Neste “museu pessoal” (Castro, 1996:17), alternou entre a individualidade silenciosa do acto criador e a tertúlia literária com a geração que liderou – e que aqui recebeu, rodeado por paredes povoadas de sombras de maturidade, sorrisos infantis, paisagens meditativas, aguadas céleres, interiores de perda dolorosa, fantasmas perpétuos, simplicidade linear e malhas nervosas.” (Amorim, 2012: 76,77)
A casa apresenta a tipologia tradicional de ateliê de pintura, com luz vinda do Norte, estando a oficina articulada com a galeria que lhe fica contígua. A fachada ostenta um amplo janelão, ladeado por duas espécies de óculos, colocados em plano mais baixo. O edifício possui um pátio, a norte, uma varanda/terraço e, a sul, um jardim.
Após a morte da última habitante da casa, esta transformou-se num museu, onde os visitantes podem observar desde os materiais de pintura, até documentos diversos e correspondência, livros, fotografias e objectos pessoais, interiores de igrejas e panorâmicas da cidade do Porto. Uma interessante colecção de obras a óleo, aguarela e desenho, fazem parte deste espólio, composto por cerca de três centenas de obras do artista. Aqui se destacam duas importantes obras deste pintor: o estudo final para a obra, o tríptico ‘A Vida’ e a grandiosa tela ‘Camões lendo os Lusíadas aos frades de São Domingos’, bem como os auto-retratos, um conjunto de retratos da família e pinturas marinhas.

Este peculiar artista, quer na obra, como no percurso, distingue-se por uma personalidade introspetiva e solitária, como ele próprio afirmou no soneto que escreveu em 1928: “E na clausura onde vivo e penso, / Estranho a estéreis lutas ao que é vão, / Não me oprime de morte o desalento: / Vitorioso no que sonho e intento, / Bendigo a criadora solidão.” (Castro, 1997:11).
António Carneiro deixou também registada a seguinte frase sobre a sua vida “[…] foi simples, recolhida e imutável […]” é essa “[…] sereníssima vida a que eu aspiro, respirando forte nos horizontes puros do Sonho e do Pensamento; por claustro: a Arte; por burel: o meu sentir”.
Salientamos a seguinte passagem da obra de Jaime Ferreira “António Carneiro” datada de 1972:
“António Carneiro foi, desde menino, um místico que olhava para dentro, para ele mesmo e possivelmente para Deus – um místico com especiais sentimentos poéticos caldeados na desventura do seu modesto nascimento. E como pintor era um artista nato, artista por vocação a manifestar-se desde a adolescência.”
Mas, a sua acção na sociedade era ainda completada com uma intensa actividade literária, pois colaborou em várias publicações: dirigiu a revista portuense ‘Geração Nova’; fez parte do movimento cultural ‘Renascença Portuguesa’, instituída no Porto, em 1911; coordenou a secção artística e literária da revista ‘A Águia’, publicação que deu voz ao referido movimento, a qual dirigiu a partir de 1912, com o seu conterrâneo e amigo, o poeta Teixeira de Pascoaes. Também António Carneiro foi poeta mas, a sua obra principal, ‘Solilóquios’, só foi publicada, em 1936, poucos anos depois de morrer. Nas palavras do escultor Diogo de Macedo (1889-1959), “António Carneiro foi um caso à parte do nosso meio plástico. Nasceu poeta e foi pintor”.

A sua vida foi também preenchida com muitas exposições que levou a cabo, no Porto, em Lisboa, em Paris, Barcelona, no Brasil, nos Estados Unidos,… contactando com os círculos artísticos e intelectuais desses países. Com o mesmo intuito, realizou várias viagens pela Bélgica e Itália, esta última registada com minúcia, num diário. São itinerários que, pelo ambiente cultural encontrado, pela aprendizagem adquirida, pela novidade, tiveram repercussão nos seus trabalhos.
Destacamos a sua presença na Exposição Universal de Paris (1900), onde foi galardoado pela sua obra ‘Vida’. Esteve ainda presente na Exposição Universal de Saint Louis (Louisiana Purchase Exposition, E.U.A.,1904), em que recebeu uma medalha de prata. Igualmente, na Exposição Internacional de Barcelona (1907), foi contemplado com uma medalha de prata.
António Carneiro salientou-se, sobretudo, como retratista: auto-retratos e retratos que fez a óleo, sanguínea e lápis. É, por alguns, designado como o “retratista das almas”, dado que as obras por si executadas expressam grande sensibilidade e parecem captar os sentimentos e as emoções dos personagens representados. Gostava de retratar, sobretudo aqueles que conhecia bem para melhor interpretar a densidade psicológica de cada um. São numerosas as personalidades por ele retratadas, de que destacamos o poeta Teixeira de Pascoaes, o escultor Teixeira Lopes, o seu filho músico, Cláudio Carneiro, o escritor e poeta Guerra Junqueiro ou a violoncelista Guilhermina Suggia.
Além dos retratos, destacam-se também as cenas familiares, os motivos religiosos, como interiores de igrejas, ou figuras como o ‘Ecce Homo’, além de temas de cariz histórico e paisagens… A sua obra manifesta alguns aspectos inovadores, dentro da pintura da época. Todos os seus mais íntimos sentimentos e as suas características de misticidade e melancolia, solidão e bucolismo plasmam-se nas suas telas. O carácter místico que revela é, provavelmente, a característica mais marcante da sua personalidade e da sua obra. Era mesmo apelidado como ‘O Mongezinho de Nova Sintra’, ou como o “pintor místico”, o ‘contemplativo’, …
É difícil inserir a pintura de António Carneiro numa corrente artística bem definida, pois ela é feita de várias inspirações e cruzamentos destacando-se, contudo, o simbolismo como tendência mais marcante.
António Carneiro morreu no Porto, a 31 de Março de 1930.
O Porto homenageou-o dando o seu nome à rua onde habitou e trabalhou e onde se encontra a sua Casa-Oficina, hoje sob a orientação da Câmara Municipal do Porto.
Também aqui, na Casa-Oficina, se evoca o outro filho de António Carneiro, o distinto compositor Cláudio Carneiro casado com a violinista americana Katherine Hickel Carneiro, acérrima defensora do valioso espólio existente na casa.

Foi ela a última habitante deste lugar, vivendo aí sozinha como guardiã dos bens familiares. Mas, apesar da sua avançada idade, mostrava sempre uma enorme vivacidade na descrição dos objectos que a casa possuía.
Presentemente, a Casa-Oficina encontra-se em obras de restauro mas, ficamos a aguardar que se mantenha o espírito e a mística que o edifício respirava, não se desvirtuando o que de melhor nela se encontrava.
Bibliografia consultada
AMORIM, José Carlos de Castro (2012), António Carneiro. Pluralidade e desígnios de um Ilustrador, vol. I., Porto. (Dissertação apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto). Disponível em https://core.ac.uk/download/pdf/143397821.pdf [Consultado em Dez. de 2022].
CASTRO, Laura (1997), António Carneiro. Edições Inapa, Lisboa.
FERREIRA, Jaime, (1972), António Carneiro, Câmara Municipal de Matosinhos, Matosinhos.
FRANÇA, José-Augusto (1967), A Arte em Portugal no Século XIX, vol. II, Bertrand Editora, Lisboa.
Obs: Por vontade da autora e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc. eTal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
01fev23