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As greves dos professores e a crónica austeridade

António Pedro Dores

 

Há as ‘contas certas’ para o BES, para a TAP, para os credores e quejandos, e há a ‘boa-fé’ (também há quem chame “roubo”) para os professores, médicos, enfermeiros, pessoal de transportes e potenciais grevistas em geral.

Foi em 2012 que os professores começaram a reclamar respeito, num pico de reacção social ao agravamento das políticas de austeridade. Segundo a OIT, entre 2004 e 2017 a parte dos rendimentos do trabalho na riqueza gerada diminuiu globalmente apesar – ou por causa – da entrada dos trabalhadores da Índia e da China nos mercados de trabalho terem, naquelas paragens, aumentado os rendimentos. Em Portugal, a parte dos salários caiu de 66% para 55% nesse período.

Para enganar o pagode, em 2012, os professores foram apresentados pelo governo como elites, como filhos dilectos das elites, a par de médicos, enfermeiros e magistrados, todos a viverem à custa dos trabalhadores do privado. Parecia que o governo estava do lado dos que sofreram tratos de polé nos anos da austeridade, que se viria a agravar com a Troika – até hoje, e a culpa da desvalorização do trabalho era dos professores.

Clara Mattei? estudou o surgimento das teorias/políticas económicas da austeridade, há mais de um século, no fim da Primeira Grande Guerra. Para fazerem a guerra, as elites tinham organizado economias dirigidas pelos estados em função das necessidades militares. As ideologias que opunham os negócios à violência, as empresas aos estados, as burguesias às aristocracias, como se fossem mundos incomunicáveis, ficaram nuas, tornaram-se inoperativas.

Os comunistas posicionaram-se contra a guerra e a favor da subordinação da economia ao estado, do mesmo modo que as forças armadas também o faziam. Pareceu, naquele tempo, uma política sensata à maioria das pessoas. As políticas de austeridade, explica Mattei, são a instrumentalização de sistemas financeiros para substituir as ideologias liberais falidas e justificar as políticas fascistas que então emergiram para parar as reclamações populares a uma vida decente. Foi assim que nasceu o anti-comunismo liberal e fascista como política anti-ideológica, puramente estigmatizante e violenta contra qualquer oposição ao capitalismo (Bevins, Perkins, Woodiwiss)?.

Obviamente, disseram os economistas, ninguém poderia viver acima das suas possibilidades, a não ser alguns, poucos, privilegiados protegidos da política e das massas, segundo e economia rentista testada com sucesso na Idade Média.

Segundo Malthus, que descreveu a economia medieval, era preciso não permitir um aumento demasiado grande da população para evitar que as populações consumissem todo o produto do seu trabalho e deixassem as aristocracias com menos onde sacar. As elites de hoje, libertadas pelas tecnologias modernas dos limites de produtividade agrícola, usam a financiarização da economia para criar um mundo à parte, o dos investidores, que reclamam para si o máximo de saque que possam conseguir, ainda que isso implique a fome ou a guerra para as populações mais desprotegidas ou simplesmente com azar.

A sorte das elites é que o comunismo falhou. O azar é que se acabou o pretexto ideológico para organizar à descarada o ódio contra os outros. Desde o fim da Guerra Fria, a política internacional tem-se ocupado a estigmatizar os muçulmanos, os migrantes, os devedores, as doenças contagiosas, os russos (amarrando-os ao regime de Putin), a China. A utopia da globalização, a aldeia global, foi acompanhada por choques de civilização à procura de inimigos que substituíssem os comunistas. Voltou-se ao lema da expansão da Fé e do Império, uma subordinação geral à força ao modo de vida ocidental. Pequim tornou-se candidata a acolher a nova sede imperial global, face à decadência de Washington.

A esperança de Michael Hudson é de que a China recuse fazer o que o ocidente fez: acumular símbolos de riqueza (especulação) em vez de organizar a produção (indústria). Para este economista norte-americano, o alheamento das elites ocidentais da sorte das massas deve-se aos processos aristocráticos de especulação alienada da produção. De facto, a meritocracia revelou-se pouco mais do que um logro pós-moderno para justificar a recuperação das políticas aristocráticas que se pensavam extintas (Markovits e Sandel).

Desde 2012 que os professores reclamam por respeito e por carreiras profissionais a que têm direito, mas não usufruem. Primeiro foram as obrigações internacionais de um estado falido e, depois da Troika, a reposição de salários da geringonça. Esperaram para ver o que significa a política do Ronaldo das finanças. Com a maioria absoluta, voltou a política “para além da Troika”. O Partido Socialista, como antes dele o Partido Social Democrata, está disposto a perder a sua popularidade para oferecer a alguns dos seus dirigentes as carreiras políticas junto das elites que animam as vidas de Guterres e de Durão Barroso e fazem, juntamente com Cristiano Ronaldo, o orgulho da nação. As elites especulativas levam com elas, para o seu mundo desumano de fantasia, os políticos de serviço?.

A escolarização universal e os serviços de saúde são parte do pacote de políticas assistencialistas que acompanharam a desmobilização das tropas desde as Grandes Guerras e contra o comunismo, desde os anos 20 do século passado. A Guerra Fria e os movimentos sociais que acompanharam a integração social do mundo dos trabalhadores como cidadãos eleitores, viveram grandes taxas de crescimento económico decorrentes da reconstrução no pós-guerra e da criação de sociedades de consumo, dito primeiro mundo, em concorrência com sociedades em industrialização acelerada, o segundo mundo, ambos servidos pelas matérias-primas do terceiro mundo.

Para as empresas, a vantagem da organização do sector social do estado foi embaratecer o custo da mão-de-obra e mobilizar todas as atenções da sociedade para a profissionalização da vida ao serviço da economia da nação, a nova religião?. As escolas são instrumentais para promover a competição hierárquica e o individualismo que tolhem a acção colectiva. As multiplicação das divisões escolares e profissionais que substituíram as divisões de classe libertaram os políticos das suas obrigações de representação, quais sacerdotes, para melhor servirem as elites, os alegados investidores, na verdade especuladores.

A abertura das escolas aos filhos dos trabalhadores reconfigurou o sistema escolar. Este deixou de ter por principal missão ensinar. Passou a ser um tempo sabático de alheamento dos jovens da sociedade. Quando libertados das escolas, envergonhados por tantos anos passados a mostrar que sabem aquilo de que não fazem ideia para que serve, aprendem a viver na sociedade das mentiras que é o mundo do trabalho-consumo.

Como diria Cavaco, que ninguém se engane ou tenha dúvidas. É que os processos de avaliação não param de se multiplicar, com as inevitáveis (na verdade desejadas) injustiças e invejas que em nada ajudam o trabalho. Porém, as avaliações justificam as desqualificações. Como bem sabem os professores, o nível de exigência baixa enquanto a burocracia aumenta. Como dizia a anedota soviética, a oligarquia finge que nos paga e nós fingimos que trabalhamos.

É, de facto, uma falta de respeito o modo como os professores são avaliados. É uma representação daquilo que se passa na sociedade: as promessas de uma vida melhor através da convergência dos salários europeus em que o estado e o povo portugueses, a seu tempo, acreditaram serem verdadeiras, foram tão mentira como outras promessas eleitorais. A crescente auto-avaliação permanente (sem CV é como ser um migrante sem autorização de residência) é modo de produzir submissão acrítica que se espera que os professores transmitam aos alunos de tenra idade como preparação para a vida e a mentira activas.

Os professores deixaram de formar trabalhadores (o que faziam sobretudo através do primeiro ciclo de escolaridade). Passaram a formar profissionais que não fazem ideia do que é o mundo do trabalho (passam os dias em salas de aula com professores que não conhecem as empresas). O objectivo é que os profissionais sejam capazes de fazer tarefas soltas, desgarradas, cujo sentido desconhecem. Só quem os empregar e os colocar na respectiva linha de montagem poderá saber para que estão (todos) a trabalhar.

Sem saber quem estão a formar, os pedagogos recomendam aos professores que se informem sobre quem são os seus alunos: quem são os seus pais e respectivas áreas de residência. Que dediquem a cada um uma atenção personalizada. Contraditoriamente, as escolas presumem que os professores apenas trabalham quando estão nas aulas ou a fazer trabalho burocrático. Carregam no número de alunos por cada professor e nos trabalhos de secretaria.

Comparado com o trabalho desqualificado, ser professor pode ser humanamente gratificante. À medida que a tarraxa da desqualificação pressiona ocorrem as doenças mentais, o ‘burnout’. Uma greve alivia mais do que uma manifestação e uma manifestação mais do que um contacto com os alunos. Uma série de greves com manifestações pelo meio acompanhada por alunos pode ser muito terapêutica. Não sei se resolve os problemas políticos da educação, pois a humilhação de que sofrem os professores e transmitem aos seus alunos é parte da política de austeridade que, segundo Mattei, já tem mais de um século e oficialmente dura há mais de uma década. Mas ao menos abrirá os olhos a alguns professores e alunos para a necessidade de criar novos espaços de liberdade.

 

 

Obs: Por vontade do autor e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do ‘Etc. e Tal jornal’, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.

 

 

01fev23

 

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