Maximina Girão Ribeiro
Continuamos, neste edição, o nosso propósito a caminho da descoberta ou redescoberta das estátuas do Bonfim.
Nesta época de capitalismo desenfreado e de uma terrível aceleração do tempo na vida de cada um de nós, todos sabemos que não há tempo para olhar, ver, muito menos para observar ou fazer exercícios contemplativos. Mas, o nosso objectivo é proporcionar essa observação que, depois, cada um de vós poderá fazer junto de cada estátua para melhor apreciar os pormenores. Alguém disse que “[…] cidade sem arte não é cidade, é apenas um sítio impróprio para se viver, já que a arte humaniza e vivifica”.
Desta vez, vamos para junto do Museu Militar, edifício que alojou, por muitos anos, a PIDE/DGS (Polícia Internacional de Defesa do Estado/Direcção Geral de Segurança) e, numa zona ajardinada que fica junto do cemitério do Prado do Repouso, no Largo de Soares dos Reis, na parte mais perto do referido edifício, encontramos um busto em bronze que assenta num cilindro granítico, onde sobressai um ramo de cravos, como símbolo de “Mulher de Abril”, assim como uma inscrição. O monumento representa Virgínia de Moura (1915-1998), a grande lutadora contra o regime de Salazar.
Segundo o Jornal “Avante”, nº 1360, o monumento servirá para “[…] recordar às gerações (presentes) e vindouras, […] a vida desta grande figura de mulher e resistente antifascista que uma inscrição resume de forma simples […]”:
Uma vida, uma luz
Na longa “noite de pedra”…
Homenagem à Mulher, à cidadã, à grande
Lutadora pela Liberdade”.
Virgínia de Moura nasceu a 19 de Julho de 1915, em S. Martinho do Conde (Guimarães). Era filha de uma professora primária, mãe solteira, o que para a época era considerado completamente fora das normas vigentes, pelo que, tanto Virgínia como a mãe, tiveram de enfrentar situações de injustiça e intolerância, mesmo por parte da própria família. Esta situação acabou por criar limitações na vida de Virgínia, mas também modelou a sua maneira de ser impulsionando-a, muito cedo, para a luta contestatária. A própria Virgínia, em 1996, recordou:
“Vivi ali uma infância feliz e alegre… Os habitantes dessa terra foram a minha primeira família. A verdadeira aceitou mal o meu nascimento e tanto o meu avô como os meus tios mais velhos cortaram relações com a minha mãe, durante dez anos.”
Virgínia sentiu a rejeição na escola e no liceu que frequentou no Porto, o Carolina Michaëlis, deixando este testemunho:
“A nossa vida não foi fácil. Lembro-me de ouvir colegas de Liceu dizerem, baixinho, que gostariam que eu fosse a casa delas, mas que tal não podia ser porque o meu pai não era casado com a minha mãe.”
Virgínia de Moura licenciou-se em Engenharia Civil, na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), onde foi uma das primeiras mulheres a cursar Engenharia Civil (1943-1948) em Portugal, ou seja, foi a segunda licenciada pela mesma faculdade. Contudo, nunca ocupou nenhum cargo público por ser conotada como activista política, resistente ao Estado Novo e, em consequência da sua intervenção política, nunca lhe foi consentido exercer a sua profissão, nem leccionar oficialmente, ou ter qualquer emprego público.
Cedo se ligou ao Partido Comunista Português, onde conheceu António Lobão Vital, um jovem estudante de Arquitetura, participante nas lutas académicas e comungando das mesmas ideias de Virgínia. A luta que travaram levou-os, várias vezes, a serem presos pela polícia política. Acabariam por casar em 1935, pelo que viveram juntos, durante 42 anos, até à morte de Lobão Vital. Foram companheiros de vida e luta! Ambos desejaram filhos, contudo, nunca os tiveram.
Segundo o escritor Ferreira de Castro “Virgínia de Moura é uma das corajosas mulheres de Portugal que muito tem sofrido por amor ao Povo.”
Recolhemos uma outra frase que bem define esta activista política que conseguiu ultrapassar barreiras incalculáveis:
“Uma vida amassada no sentir colectivo do nosso povo. Uma Mulher portuguesa que assumiu integralmente a sua qualidade de cidadã viva, inteira, actuante.” (in Folheto MDM, 1983, arquivo MDM)
Virgínia de Moura faleceu, no Porto, a 9 de Abril de 1998, estando sepultada com seu marido, Lobão Vital, no Cemitério do Prado do Repouso, num jazigo construído por subscrição pública e que tem um motivo escultórico da autoria de José Rodrigues.
O busto a que nos referimos foi inaugurado, em 1999, precisamente 50 anos após a primeira de muitas outras detenções de Virgínia de Moura, pela PIDE.
A peça escultórica é da autoria de Manuel Dias, licenciado pela Faculdade Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP); doutorado em Artes Plásticas e Escultura; pós-graduado em Escultura, em Harlem (Holanda) e em Design de Palco (cenografia, figurinos, etc.) pela ‘Slade School’ da Universidade de Londres. Manuel Dias foi membro do Conselho Científico da FBAUP e da EUAC (Escola Universitária das Artes de Coimbra – ARCA). Este militante comunista foi autor de diversas obras para cenografia e figurinos para teatro, televisão, bailado, bem como de dezenas de carros para as comemorações populares do 25 de Abril, no Porto.
HERMÍNIO DA PALMA INÁCIO
Muito perto da estátua de Virgínia de Moura, ergue-se um outro monumento, o Memorial a Hermínio da Palma Inácio, também no Largo Soares dos Reis. É igualmente dedicado a um lutador contra o regime fascista do Estado Novo. O activista Hermínio da Palma Inácio, nasceu no Algarve, em Ferragudo (Lagoa), a 29 de Janeiro de 1922 e faleceu em Lisboa, a 14 de Julho de 2009.
“Aos 18 anos, abandonou Tunes para se alistar voluntariamente na Aeronáutica Militar, sendo colocado na Base Aérea nº 1, em Sintra, onde tirou o curso de mecânico de aeronaves e o de piloto civil para aviação comercial. Nesta altura estabelece relações cordiais com Humberto Delgado e com os círculos contestatários a Salazar.” (in Diário de Notícias, 14 de Julho 2009)
“Em 1947, participou numa tentativa de golpe de Estado, onde o seu papel consistia em sabotar aviões, mas acabou por ser preso e encarcerado no Aljube, onde foi torturado durante doze dias sem nunca revelar o nome do chefe da operação.” (in Diário de Notícias, 14 de Julho 2009)
Palma Inácio ficou conhecido por ter protagonizado o primeiro desvio de um voo comercial, de que há registo, a denominada Operação Vagô, em que um avião da TAP, desviado em Marrocos, voou a baixa altitude, no dia 10 de Novembro de 1961, lançando cerca de 100 mil panfletos, com apelos à revolta popular contra a ditadura.
Este combatente anti-fascista envolveu-se noutras operações, como o roubo da dependência do Banco de Portugal da Figueira da Foz, com a finalidade de financiar a luta contra o regime salazarista, acabando este feito por ser considerado o maior golpe de que há memória nas finanças da ditadura.
Foi preso diversas vezes pela PIDE e encontrava-se na prisão do Forte de Caxias quando se deu a revolução de 25 de Abril de 1974.
Desinteressado de bens materiais, morreu pobre, com 87 anos, após uma longa doença, em que foi ajudado pelos amigos, que já mal conhecia.
Nas palavras de Mário Soares, Palma Inácio foi “Um revolucionário activo, imaginativo, corajoso, consequente e pessoalmente desinteressado. Com um grande sentido da dignidade, da honradez política, modesto, mas, ao mesmo tempo, com consciência e orgulho do que fez ao serviço da Pátria, no tempo particularmente difícil em que viveu.” (Mário Soares, Em memória de Palma Inácio, in Diário de Notícias, 21 Julho 2009).
O autor desta peça de arte pública que representa Palma Inácio foi o escultor Joaquim Álvares de Sousa que frequentou Escultura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.
“A sua arte remete-nos para um universo plástico e estético que constitui simultaneamente um desafio e um estímulo para nos relacionarmos com a Arte, na sua acepção mais nobre e sublime […].” (in net “Exposição de Álvares de Sousa no Rabaçal”, Câmara Municipal de Penela, 4/10/2007).
É um memorial simples, mas esteticamente bonito, embora passe um pouco despercebido à maior parte daqueles que por lá passam. Foi elaborado a partir de uma subscrição pública levada a cabo por um grupo de antigos companheiros de luta de Palma Inácio.
O monumento simboliza a fuga espectacular da prisão da PIDE, protagonizada por Palma Inácio, considerada uma das mais arrojadas e famosas de que há memória, na prisão da PIDE, no Porto, consumada de 7 para 8 de Maio de 1969, serrando as grades da cela, com lâminas que a sua irmã lhe fizera chegar, mas que nunca foram descobertas pelos inspectores da PIDE.
O monumento foi executado em aço corten tendo, na lateral esquerda, um poema de Bertolt Brecht:
Há homens que
lutam um dia,
e são bons;
Há outros que
lutam um ano,
e são melhores;
Há aqueles que
lutam muitos
anos, e são
muito bons;
Porém há os
que lutam toda
a vida.
Estes são os
imprescindíveis.
Em destaque, na parte cimeira do frontal, está o busto de Palma Inácio, em bronze, bem talhado. Ao lado há uma janela com ferros, vendo-se um deles cerrado e, na base, como se fosse no parapeito da janela, está um livro pousado.
É um conjunto harmonioso e vale a pena visitar estas duas obras escultóricas que ficam junto do edifício do Museu Militar.
Bibliografia Consultada
Dados sobre Virgínia de Moura:
Jornal Avante! N.º 1275 – Virgínia Moura., O último adeus a Virgínia Moura.
Jornal Avante! https://www.avante.pt/arquivo/1289/8903h3.html, A última entrevista de Virgínia de Moura.
Jornal Avante! Nº 1360, Homenagem a Virgínia Moura no Porto
Jornal Avante! |2172, Coragem, firmeza, dedicação
SIGARRA U. Porto > Memória U.Porto > Antigos Estudantes Ilustres U.Porto: Virgínia Moura
SILVA, Germano; DUARTE, Luís Miguel (Coord.), (2001) Dicionário de personalidades portuenses do século 20, Porto Editora, Porto.
Virgínia Moura, Mulher de Abril, Álbum de memórias (1996.), Edições Avante!, Lisboa.
Dados sobre Hermínio Palma Inácio:
Jornal Diário de Notícias, 14 de Julho 2009
Jornal Diário de Notícias, 21 Julho 2009, Mário Soares, Em memória de Palma Inácio.
Obs: Por vontade da autora e, de acordo com o ponto 5 do Estatuto Editorial do “Etc. e Tal jornal”, o texto inserto nesta rubrica foi escrito de acordo com a antiga ortografia portuguesa.
01abr23
Virgínia de Moura conheço, Palma Inácio passa a fazer parte do que sempre vamos aprendendo.
Obrigada pelo seu comentário. É minha intenção lembrar o passado, porque é de história e de memórias que se faz o nosso presente.
Parabéns por este trabalho essencial: a memória da luta pela liberdade, que permite compreender o presente e visar o futuro.