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Dupla hermenêutica de um mapa chinês para o séc. XXI

Miguel S. Albergaria

 

O planisfério anexo é bastante diferente daqueles a que mais nos habituamos. Pela minha parte, não foi imediato ou intuitivo localizar ali o Porto, onde este jornal é editado. Ou aquelas que foram as mais ‘periféricas’ (!) possessões do império português, Timor e Macau, e mais ainda o Brasil, origem da maior comunidade estrangeira em Portugal.

Todavia, essa representação do mundo habitado não é nem mais nem menos verdadeira do que os planisférios horizontais com os polos nos topos; o Atlântico ou a Península Ibérica e a África ocidental no centro; com os cantos (ex. Gronelândia) ou agigantados ou inclinados para dentro, conforme os meridianos tenham sido imaginados ou como paralelos (Mercator) ou como crescentemente curvos (Robinson).

Esta comparação convoca-nos a duas utilizações do termo ‘hermenêutica’ (i.e. leitura interpretativa): uma, diretamente sobre o mapa anexo e o mundo hoje em preparação; a outra, sobre afinal quaisquer artefactos técnicos com que quotidianamente habitamos o mundo.

 Hermenêutica de um planisfério para o séc. XXI

O presente mapa é de origem chinesa. Mantém a posição central desse país que se encontra logo no ‘Kunyu Wanguo Quantu’, o primeiro mapa mundial desenhado na China (1602). Mas, do séc. XVII ao séc. XXI, vai todo um salto.

Desde logo, a configuração vertical é apropriada ao visionamento mediante telemóvel. A técnica cartográfica ajusta-se assim à tecnologia do canal que deverá ser eminentemente utilizado na transmissão dessa mensagem de representação do mundo.

Mas outras implicações parecem ser também aí assumidas. Uma, socioeconómica e demográfica, é a relevância das deslocações e transportes, com crescimento geométrico após a II Revolução Industrial. Outra, climática, é a previsão do degelamento do polo Norte durante o verão a partir de meados deste século, o que facultará, durante esses períodos, viagens marítimas muito mais curtas entre a Ásia, a América e a Europa.

Planisfério chinês, in ‘Prior Probability’

Em detrimento de uma representação mais isomórfica – i.e. que mantivesse uma forma próxima à de uma perceção natural do objeto representado – os designers deste mapa, quais pintores cubistas, integraram assim os dois polos no interior do mesmo plano. E subordinaram qualquer proporcionalidade das áreas das diversas regiões às posições relativas entre estas, num ajeitamento da geografia física à humana (com respeito à demografia, economia etc.).

Posto isso, ao centro, encontra-se a zona cujas relações, em todas as direções, cada vez mais pesam no mundo: o Extremo Oriente e a Índia.

Daí, para a esquerda do utilizador e intérprete deste artefacto técnico, estende-se uma península bastante recortada, de tamanho decrescente mas toda ela relativamente pequena, a Europa. Logo abaixo, com separação apenas por uns grandes lagos ou pequenos mares estendidos ao comprido, a Arábia e a grande África.

Para baixo do centro mas próximos deste, o longo arquipélago indonésio e a Austrália. A seguir, a Antártida gelada e, depois, a fértil e povoada América do Sul. Separável, pois, das restantes Américas.

Para a direita, o mapa não apresenta nada além de mar. Cabe ao intérprete compreender que essa também é uma direção até ao continente americano, então reunido.

E para cima, também perto do centro ainda que através de terra e mar (por enquanto gelado), a rica América do Norte.

Nas periferias desta representação do mundo, ficam agora zonas como aquela pequenina faixa que, no quadradinho que quase reúne a península europeia e o norte de África no fim do estreito mar que separa estes territórios, está mais afastada do eixo que (entre Barcelona e Gibraltar) precisamente estabelece esta relação terrestre. À atenção de quem habita essa faixazinha.

Quando muito, o país que aí fica também é composto por um arquipélago, ao longo dos paralelos 36º e 39º N., o qual se encontra na intersecção entre a rota marítima desde a África ocidental à confluência a norte dos três continentes politicamente relevantes, e uma rota mais desviada, mas com mar menos alteroso, entre a Europa ocidental e a costa Leste da América do Norte. A relevância desta posição atlântica, porém, será tamanha que, mesmo aumentando a imagem, me parece que este mapa nem chega a assinalar esse arquipélago – embora, nos últimos anos, importantes governantes chineses tenham visitado o porto de Praia da Vitória, com atenção a equipamentos na base das Lajes…

Enfim, este é o mundo que, nas suas práticas (relevância dos transportes…), na sua organização espacial (centralidade vs. periferias), na sua organização política, militar e económica (com o crescente poder asiático a determinar a posição central no mapa), e nas tecnologias utilizadas pela generalidade de quem nele habita, este mapa apresenta aos respetivos utilizadores. Cada um dos quais conformará a sua intervenção no mundo que habita a essa, ou porventura outra, configuração deste último.

 A mediação hermenêutica da tecnologia

Essa mediação entre o mundo e os seres humanos pelas tecnologias tem sido enfatizada, desde as últimas décadas do século passado, por autores como Don Ihde. O qual lhe reconhece duas dimensões: uma ‘existencial’ – pela qual nós intervimos e habitamos o mundo mediante tecnologias (portos, navios, bússolas e mapas…) – a outra ‘hermenêutica’ – pela qual o mundo nos fica configurado, e assim o interpretamos, mediante artefactos como precisamente mapas ou bússolas. Mas também tudo o que funciona para nós como brocas para dentistas experimentados, os quais não só intervêm nos dentes dos pacientes mediante elas, mas, nesta mediação, interpretam no comportamento da broca o estado do dente em intervenção.

Em conformidade, podemos interpretar o mapa anexo agora apenas como artefacto técnico, evidenciando o que se verifica com tantos outros artefactos.

Esse filósofo americano distinguiu quatro modos da referida mediação, cada um atravessado nos dois sentidos pelas referidas dimensões. Outros autores têm desenvolvido esta pista reflexiva, reconhecendo mais modos de mediação tecnológica, inclusive na consideração do recente desenvolvimento de tecnologias disruptivas baseadas em Inteligência Artificial (em ‘Da influência das tecnologias públicas’, na edição de novembro do ano passado deste jornal, abordei alguns desses outros desenvolvimentos). Mas hoje aproveitarei o caso da tecnologia cartográfica, também mencionada por Ihde, para apontar aqui duas notas, por sinal convergentes, sobre o modo de mediação que ele designou particularmente ‘hermenêutica’.

Diferentemente da mediação por ‘incorporação’ da tecnologia – p. ex. óculos graduados para compensar miopia – em que o artefacto normalmente passa despercebido e o nosso foco se encontra no objeto visado mediante aquele artefacto, na mediação hermenêutica o foco imediato encontra-se no próprio artefacto. Cuja leitura, então, facultará uma reconstituição do objeto mediado pelo artefacto.

É o caso da conceção geográfica do mundo mediante a leitura e interpretação de um mapa. Ou os casos da visão da paisagem toda ela acastanhada por óculos escuros; da visão de soldados esverdeados em movimento num meio escuro, mediante óculos de visão noturna; da visão, mediante microscópios, de pequenos tubos ou bolas que representam bactérias das quais nenhum sentido nosso consegue dar conta diretamente; ou de um espectro de cores, a interpretar racionalmente como sinal dos anos-luz a que se encontra uma estrela visada num telescópio, imagem esta que já não verifica qualquer isomorfismo com o objeto referido.

Nessa crescente perda de isomorfia, importa notar que as competências hermenêuticas se tornam correspondentemente decisivas para uma utilização funcional dos artefactos e, nessas funções práticas, uma existência adequada ao mundo que habitamos.

Por conseguinte, pelo lado dos utilizadores das tecnologias, e tanto mais quanto mais tecnologizado se encontra o mundo, devemos cuidar de desenvolver e aprimorar essas competências.

Pelo lado dos designers das tecnologias através das quais o mundo se nos apresentará, importa que os mostradores ou painéis de leitura sejam o mais claros possível, inclusive na articulação das respetivas leituras particulares.

Uma outra nota decorre de se verificar, na mediação hermenêutica, um ‘ponto cego’ onde esta mais facilmente falhará e menos disso se dará conta: a articulação entre a fração do mundo representado pelo artefacto técnico e este último.

Com efeito, por um lado, a tecnologia apenas representa, não apresenta ‘em corpo próprio’ a sua referência. Podendo, pois, falhar nessa tradução. Mas, por outro lado, a articulação entre essa referência e a estrutura mediadora está para além do foco do utilizador, que se queda no artefacto – nomeadamente, nos respetivos mostradores e comandos. Assim, esse utilizador mal pode dar conta de alguma falha na referida articulação.

Esse défice avaliador do utilizador pode, no entanto, ser reduzido com a utilização de mediações redundantes. No exemplo aqui abordado, desde outras representações da Terra até às estatísticas demográficas, económicas etc. implicadas na mencionada escolha do designer a favor das possíveis relações entre as regiões, e contra o isomorfismo ou a proporção das áreas referidas.

No entanto, como introduzi acima, nenhuma destas representações constitui a ‘pedra de toque’ das restantes. E nenhuma esgota tudo o que haverá na referência delas todas.

Pragmaticamente, fica a sugestão de que a mencionada ‘pedra de toque’ apenas poderá ser a resolução, ou falta desta, dos problemas em função dos quais se utilizem esses ou outros artefactos.

Importará, assim, a cada agente desenvolver as competências heurísticas de resolução de problemas práticos ou teóricos, frequentemente mediante artefactos técnicos. Entre as quais se contam as competências de leitura e interpretação crítica, que facultam uma hermenêutica tecnológica funcional.

Designadamente, uma hermenêutica não só, ingénua, do conteúdo ou mensagem explícita que o artefacto sugira – como a organização do mundo, mediante um dado mapa – mas também, crítica, da forma como o artefacto, enquanto tal, precisamente o sugere. Com todas as virtualidades, mas também insuficiências e enviesamentos, que qualquer sugestão pode comportar.

 

01mai23

 

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