Miguel S. Albergaria
Entramos neste mês no período de realização das provas de avaliação externa dos alunos dos ensinos básico e secundário. Entre outras provas, os exames nacionais que condicionam o acesso ao ensino superior. Entretanto, o IAVE – Instituto de Avaliação Educativa I.P. publicou a estrutura comum a todas essas provas e o respetivo ‘enquadramento concetual’.
Este enquadramento é particularmente significativo, pois não se esgota – o que já não seria pouco – nas provas acima referidas. Antes, constitui-se como um critério ou esquema orientador do que se espera desses níveis de ensino na dimensão cognitiva. É todo um projeto educativo e, assim, na verdade todo um projeto de sociedade, de economia e de organização política que aí se joga.
Valerá pois a pena confrontá-lo com os desafios perspetivados para a IV Revolução Industrial que estará em curso.
O enquadramento concetual das provas
O documento mencionado explicita que, como nos anos anteriores, as questões daquelas próximas provas se dividem em três níveis, conforme as respetivas complexidades cognitivas: um nível ‘inferior’, que convoca a memorização e mera reprodução das fórmulas de conhecimento; um nível ‘médio’, cujas questões requerem compreensão, interpretação e aplicação do conhecimento em situações rotineiras; e um nível ‘superior’, que comporta a formulação pelo examinando de juízos de valor, a argumentação, e a aplicação do conhecimento a novas situações.
O IAVE prescreve um “equilíbrio na valorização das várias aprendizagens avaliadas e dos níveis de complexidade cognitiva requeridos” (’Informação-Prova Geral’, p. 2). Para isso, entre os diversos itens, a cotação mais elevada tem de ser inferior ou igual ao dobro da menos elevada.
A mencionada estruturação facilmente se reporta a taxonomias como a do psicólogo americano Benjamin Bloom, no domínio cognitivo. A estrutura geral dos exames e demais provas tem assim um importante respaldo científico. Resta aferir se esse enquadramento concetual que, enquanto se reporte a Bloom, começou a ser formulado no dealbar da III Revolução Industrial a meados do século passado, ainda recebe, por sua vez, respaldo da sociedade e da economia a aproximar-se do fim do primeiro terço do séc. XXI.
A novidade laboral da IV Revolução Industrial
Na última década, com o crescimento exponencial da IA e suas aplicações, autores como E. Brynjolfsson e A. McAfee (2014) salientaram os desafios e oportunidades decorrentes dessa tecnologia e das TIC (t. de informação e comunicação). Entre nós, essas questões foram exploradas em fóruns como a conferência do BCE em Sintra, em junho de 2017. Ou, já depois da experiência global da utilização das TIC durante a pandemia, na entrevista a Daniel Susskind, disponibilizada online pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, a propósito da sua obra ‘Um Mundo Sem Trabalho’ (2020). Apontemos algumas ilações deste autor.
Desde logo, as alterações tecnológicas em curso não têm precedentes históricos equiparáveis. Pois não substituem apenas a energia ou mesmo a destreza humanas, mas sim a própria capacidade de tratamento da informação, decisão, e até geração de conteúdos por combinação de dados. Ou seja, tarefas mentais para cuja execução os seres humanos se desviaram, uma vez deixadas as tarefas repetitivas físicas para máquinas, também estão agora sendo ocupadas por artefactos técnicos. Pelo que o erro ludita – de que as máquinas da I Revolução Industrial reduziriam a procura de trabalho humano em geral – não constitui um contraexemplo às atuais preocupações com as consequências sociais destas novas tecnologias.
Mais precisamente, o problema nem será um súbito desaparecimento de postos de trabalho. Mas a gradual – porventura rápida e próxima – incapacidade de largas parcelas da sociedade encontrarem trabalho por que elas facilmente se responsabilizem. Seja por falta de competências. Seja por não se disponibilizarem a assumi-lo por razões culturais de identificação.
Um exemplo desta última dificuldade é o desempenho de tarefas de apoio social – a crianças, idosos ou doentes – por homens, em sociedades como a nossa, ou por imigrantes, em sociedades como a japonesa (tradicionalmente chauvinista).
O que abre a questão do efeito psicológico, social e cultural de um desemprego sistémico. Nomeadamente, sobre o sentido que cada pessoa dará à sua vida uma vez que se encontre desvinculada de qualquer obra e contribuição para a respetiva sociedade. Ocorre-me que o exemplo dos cidadãos de Roma durante o Império não é tranquilizante.
Mas fixemo-nos nas competências humanas requeridas no mundo com IA. O referido economista e investigador inglês não as especifica nessa entrevista. No entanto, abre duas pistas significativas:
Haverá lugar para as competências que se reportem a tarefas que algoritmos e robôs ‘inteligentes’ (ainda) não desempenham ou fazem-no mal. Como as de interação pessoal empática, de resolução de problemas, ou de criatividade.
Relativizando esta primeira pista, porém, não podemos ignorar os ‘robôs sociais’ cuja interação está a ser bem aceite em alguns meios (o próprio Susskind refere o caso japonês). Toda a sorte de robôs que resolvem problemas, como o das melhores rotas enquanto aspiram o chão (embora me pareça que o meu aqui em casa ainda tem alguma coisa a melhorar nesta competência). E, mais impressionantemente, algoritmos capazes de ‘criar’ desde brochuras turísticas a composições musicais.
O mesmo autor também admite haver lugar para as competências que se reportam ao design, produção e utilização destas novas tecnologias.
Sobre a utilização, suponho que essas competências tenderão a ser as necessárias não já à operacionalização de tais tecnologias – como na condução de um camião ou no emprego de um bisturi – mas à cooperação com essas últimas. Desde a decisão entre as alternativas sobre horário da viagem, rota… apresentadas pelo algoritmo que conduzirá o camião; até à interpretação de uma imagem num ecrã, nas escalas que se queira, e ao manuseio de um joystick que comunica com um braço mecânico, o qual então intervém num organismo humano, depois de o robô sozinho tanto ter ‘aberto’ como vir a ‘fechar’ em seguida esse doente.
Quanto ao design e produção de tais robôs, não deixemos de considerar as virtualidades da IA com capacidade de aprendizagem.
Um lugar exclusivo dos agentes humanos não parece pois estar garantido.
Em síntese, sem nos aventurarmos em especulações de longo prazo – lá para o nebuloso fim da próxima década – é plausível que as competências cognitivas que serão procuradas nos primeiros empregos dos atuais estudantes serão eminentemente as do nível superior reconhecido pelo IAVE. Correspondentes aos níveis mais complexos, na esteira de B. Bloom.
“Muitas vezes, ainda estamos a formar pessoas para serem profissionais do século XX, em vez de do séc. XXI“
Este subtítulo traduz uma observação de Susskind na referida entrevista (min. 14:14). Aplicar-se-á à próxima classificação dos estudantes portugueses, e à sugestão que assim se lhes faz sobre as competências que deverão continuar a desenvolver, na justa medida em que as cotações dos conjuntos de itens de níveis inferior e médio se aproximem, ou até ultrapassem, a cotação do conjunto de itens de nível superior.
Entretanto, o processo de resposta individual a questões verbais ou de linguagem formal, num tempo limitado – que constitui o tipo de provas que temos vindo a considerar – está longe de esgotar as metodologias de formação laboral e social. Desde os trabalhos de grupo, até aos exercícios físicos e às obras artísticas ou técnicas.
Para aferirmos o grau em que aquela observação se aplicará à escola portuguesa atual, pois, além da cotação, nos exames e por sugestão na maioria dos testes sumativos internos, das questões que convocam faculdades intelectuais superiores, devemos atender, nas avaliações internas, por um lado, às cotações das avaliações psicossociais. A começar pela assiduidade, pontualidade e responsabilidade, mas também a cortesia se não mesmo empatia, e outras como a reação à frustração – ultrapassam os 10% das avaliações internas? E com que grau de exigência?
Por outro lado, importam a robustez e destreza físicas, necessárias em muitas daquelas tarefas que os robôs com IA (ainda) não desempenham bem. Como lavar doentes ou idosos, inúmeros postos de trabalho em turismo… – que requerem tanto estas competências quanto as anteriores. Mas qual é o peso da avaliação de Educação Física na classificação final do ensino secundário, e o que é que se exige à saída nessa disciplina? Qual é o efeito verificável, no fim da escolaridade obrigatória, das educações artística e técnica no ensino básico?
Questões à atenção dos executantes (professores) e dos organizadores (diretores vários) da educação escolar. Mas, creio que mais ainda, das famílias com jovens em idade escolar, em particular, e, em geral, dos eleitores que se importam com a nossa transição do primeiro para o segundo terço deste século.
Foto: IAVE
01jun23